Por Marcus Quintella e Marcelo Sucena, FGV Transportes
Os governos e empresas de todo o planeta estão preocupados com a complexidade da distribuição das futuras vacinas contra a Covid-19 e com a possibilidade de gargalos logísticos, especialmente no que diz respeito ao transporte aéreo de cargas, modal chave para o sucesso dessa missão de abrangência mundial, sem precedentes na história da humanidade.
No Brasil, enquanto as entidades envolvidas com a saúde pública começam a pensar na melhor estratégia para tornar a futura vacina contra a Covid-19 acessível a todos brasileiros, em todo o território nacional, o governo federal considera prematura a discussão sobre os desafios da logística de distribuição da vacina.
Essa posição governamental precisa ser mudada urgentemente, pois as autoridades federais, tomadoras de decisão, precisam ter em mente que a cadeia logística é fundamental no processo de vacinação para garantir a efetividade e eficácia da imunização de toda a população. Assim sendo, mesmo que os detalhes técnicos da vacina ainda sejam desconhecidos, o governo federal deve, imediatamente, abrir discussão com a sociedade e todos os envolvidos com a saúde pública nos estados e municípios, com o objetivo de planejar estrategicamente esse complexo processo logístico que envolve modos de transportes, armazenagem, manuseio, controle, distribuição, qualidade e segurança da futura vacina.
É de conhecimento geral que o Brasil tem tradição em distribuir 19 tipos de vacinas diferentes pelo SUS, em todo o país, e que essa experiência será utilizada no caso do imunizante que deverá existir contra a Covid-19. Contudo, a reconhecida capacidade logística histórica do SUS na distribuição de vacinas não garante o sucesso nas vacinações futuras, nem dispensa um imediato planejamento do processo de distribuição nacional da esperada vacina anti-Covid-19.
Segundo o Ministério da Saúde, o Programa Nacional de Imunização (PNI) é o maior programa público de imunização do mundo, que distribui mais de 300 milhões de doses de imunobiológicos, anualmente, por meio de seus 37 mil postos públicos de vacinação de rotina, espalhados nos 5.570 municípios brasileiros. No caso de campanhas nacionais especiais, esse número de postos públicos pode chegar a 50 mil.
Realmente, o Brasil possui um esquema vacinal complexo e extremamente completo no combate às doenças mais prevalentes aos brasileiros, cuja logística de distribuição das vacinas utiliza a infraestrutura de transportes existente no país, independentemente de suas limitações físicas e qualitativas. As vacinas chegam aos postos públicos, por mais isolados e longínquos que sejam, por meio de aviões de carga, através de aeroportos e aeródromos; por caminhões e outros veículos rodoviários, em rodovias pavimentadas ou não; e utilizando barcos, por vias fluviais.
Esse panorama já é suficiente para mostrar à população brasileira que existe uma infraestrutura de transportes com capacidade para atender a distribuição logística da futura vacina anti-Covid-19. Entretanto, o sucesso do futuro programa de vacinação contra a Covid-19 dependerá, fundamentalmente, da competência do governo federal para liderar todo o processo da cadeia logística para que a vacina possa chegar aos seus destinos finais em segurança e aptas para o uso. Para isso, deve-se reiterar que o planejamento para a distribuição da futura vacina deve começar imediatamente. Cabe ressaltar que a Anvisa, junto aos fabricantes, define a estratégia de distribuição e armazenamento da vacina.
De forma bem simplista, o transporte da futura vacina contra a Covid-19 utilizará, primeiramente, o meio rodoviário, para ser transportada do local de produção diretamente aos centros de distribuição, aos postos públicos de vacinação de curtas e médias distâncias e aos aeroportos mais próximos, para que os aviões de carga possam levar a vacina a todos os municípios e estados da federação.
Após os desembarques dos aviões de carga, novamente será utilizado o modo rodoviário para levar a vacina diretamente aos postos de vacinação dos municípios da área de influência de cada aeroporto ou a algum porto fluvial, para que o transporte aquaviário possa cumprir o seu papel de atender às populações ribeirinhas e indígenas.
Como podemos observar, os transportes rodoviário e aquaviário fazem a capilaridade, atuando nas pontas, e o transporte aéreo responde pelas grandes distâncias de nosso país. Todavia, o grande desafio é fazer toda essa distribuição da vacina de forma rápida, econômica e com segurança, visto que o ponto crítico dessa operação complexa é o momento que os lotes de vacinas deixam a fábrica e são encaminhadas aos centros de distribuição, laboratórios, aeroportos ou diretamente aos postos de vacinação. A futura vacina contra a Covid-19, por ser um produto biológico, será sensível à temperatura ambiente, umidade e luz, e, por isso, precisará seguir um rigoroso protocolo de manuseio, armazenamento, transporte e distribuição, sob pena perder sua capacidade imunogênica.
Em virtude da relevância do transporte aéreo na distribuição nacional da futura vacina contra a Covid-19, a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA) alertou o governo brasileiro sobre a necessidade de começar urgentemente um cuidadoso planejamento juntamente aos operadores logísticos, empresas aéreas e rodoviárias, concessionárias de rodovias e aeroportos e embarcadores fluviais. Além disso, a IATA chama a atenção sobre as restrições de capacidade potencialmente graves no transporte de vacinas por via aérea.
Outro alerta importante da IATA destaca que a logística da vacina anti-Covid-19 deverá prever entendimentos prévios com as autoridades sanitárias e aduaneiras para garantir medidas de segurança, de manuseio e de liberação alfandegária apropriadas.
No Brasil, após a aprovação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a disponibilização da vacina para o cidadão será realizada pelo SUS, sustentada no artigo 196 da Constituição Federal. A Lei 8.080/1990 detalha o funcionamento do SUS, que possui cerca de 37 mil postos de saúde inseridos na municipalidade brasileira, para atendimento básico e primário, devido à proximidade e acessibilidade ao cidadão. Até que as doses vacinais cheguem aos postos de saúde nos municípios, cada estado da federação solicita a quantidade necessária ao Ministério da Saúde, por intermédio do Programa Nacional de Imunizações (PNI), institucionalizado em 1975, que atualmente é responsável por distribuir 19 tipos de vacinas para o território brasileiro. O cumprimento das regras sobre o transporte da futura vacina anti-Covid-19 é de competência da União, por meio da Anvisa, como base nas Leis 6360/1976 e 9782/1999, na Portaria 802/1998 e nas RDC n° 234/2005 e n° 38/2010.
A compra centralizada das vacinas é realizada pelo Ministério da Saúde junto a fabricantes nacionais e internacionais. As unidades adquiridas são destinadas ao Centro de Distribuição e Armazenagem Nacional (CENADI), que contêm câmaras frias que garantem temperaturas de até -80 ºC. É o que se chama de hub logístico. Na sequência, de acordo com os pedidos, são distribuídas as quantidades necessárias para os estados, armazenadas nos seus centros de distribuição (CD). A conexão entre armazenagem e transporte ocorre pela priorização da data de validade mais próxima EEFO (Earliest-Expiry-First-Out).
Dessa forma, como pode ser notado em situação de pandemia, o processo logístico carece de planejamento e do aspecto gerencial sistêmico para o sucesso nesse momento destacado, devido, principalmente, à necessidade de conexão entre os elos que ligam a fabricação, passando pela distribuição para os postos, chegando ao cidadão, tomando-se os preceitos dos 7 Rs, que são:
1) o produto certo (Right product);
2) no lugar certo (Right place);
3) com a qualidade certa (Right quality);
4) na hora certa (Right time);
5) na quantidade certa (Right quantity);
6) para o cliente certo (Right customer);
7) com o preço certo (Right price).
A experiência passada mostra que o SUS tem conhecimento e capacidade de realizar qualquer processo vacinal, como já amplamente comprovado em passado recente, mas a logística brasileira para distribuição de vacinas é relativamente lenta e com muitos controles que podem não denotar eficiência nesse momento pandêmico.
Para acrescentar, no âmbito das dificuldades estratégicas, ainda há incerteza quanto à capacidade produtiva, apesar de se ter grande conhecimento da demanda nacional. Como estamos diante de rede “fria”, o aspecto da disponibilidade e do tempo de atendimento são primordiais, até diante do escalonamento das responsabilidades nos âmbitos federal, estadual e municipal.
No quesito operacional, os desafios logísticos também são elevados, pois estamos em um país com dimensões continentais e com graves deficiências em sua infraestrutura de transportes, principalmente, no que diz respeito à malha rodoviária. O Brasil possui 1,72 milhão km de rodovias, mas somente 214 mil km são pavimentadas, ou seja, 12,4% de toda a malha rodoviária. Das rodovias pavimentadas, pouco mais de 10% encontram-se concedidas à iniciativa privada. A maior parte das rodovias está sob gestão pública e a última pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT) aponta que 66% são consideradas regulares, ruins ou péssimas.
A rede “fria” impõe construções e ativos com adaptações tecnológicas controladas, para minimizar o tempo no trânsito, controlar a qualidade da carga devido a necessidade de manutenção da temperatura adequada, permitindo-se a fluidez até o ponto de consumo, que, muitas vezes, possui difícil ou nenhum acesso terrestre e o barco precisa ser utilizado.
Por exemplo, no caso de seringas e agulhas, há uma grande preocupação geral pois, sem a paralisação das outras campanhas de vacinação, estima-se que o Brasil necessitará de 300 milhões de seringas e agulhas para a vacina anti-Covid-19, em quatro meses, sendo que a capacidade atual de três fábricas em território nacional é de 50 milhões, em cinco meses. Existe ainda a capacidade de suprimento por importação, que atualmente está na casa dos 400 milhões de unidades por ano, originárias da China e da Índia. Caso seja necessária uma segunda aplicação em espaço curto de tempo, essa questão ainda gerará maior impacto na imunização adequada da população.
Em pesquisa no site do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade – ICTQ, podemos entender que um dos tipos de transporte mais sensíveis na área farmacêutica é o de produtos biológicos, que incluem todos os tipos de vacinas, e, por isso, quaisquer problemas que possam afetar a estabilidade do produto, durante seu manuseio, armazenagem e distribuição, pode resultar em sua inutilidade. Portanto, a instabilidade física da vacina contra a Covid-19 poderá ser minimizada com um cuidado especial na armazenagem e transporte, especialmente, no que tange ao controle das condições de temperatura durante todo o processo logístico.
Ainda segundo o ICTQ, os principais problemas encontrados no transporte de vacinas variam desde o armazenamento inadequado da carga até atrasos não previstos com despachos aduaneiros, pela quebra do veículo, acidente em rodovias ou greves em portos e aeroportos. Outros contratempos podem também causar riscos dos produtos, tais como a inexistência de elemento refrigerante qualificado para a embalagem térmica ou fora da temperatura ideal, além da falta de equipamentos de controle não calibrados e qualificados, caixas térmicas com avarias e funcionários que manuseiam a carga de forma inadequada. Tudo isso reforça a premência do planejamento preconizado insistentemente neste artigo, no qual deve ser traçado um plano de contingência bem estruturado e todas as ações para a qualificação do transporte, com o monitoramento da temperatura e do tempo durante todo o trajeto, considerando os itinerários escolhidos por meio de uma avaliação de risco e a melhor forma de transporte a ser utilizado, terrestre, marítimo, aéreo sem conexão ou aéreo com conexão.
Outro ponto importante que precisa ser considerado no planejamento oficial do processo vacinal é a logística reversa. Após dez anos em discussão, em 05/06/2020, foi aprovado o Decreto nº 10.388, que implementou a logística reversa de medicamentos no país. Essa nova legislação estabelece parâmetros claros para o descarte correto de produtos farmacêuticos por parte do consumidor e das empresas que integram a cadeia farmacêutica. Segundo o setor de varejo farmacêutico, esse decreto foi um marco ambiental para o país. Todavia, a logística reversa de vacinas é assunto para um outro artigo.
Em última análise, apesar da complexidade da logística para todo o processo vacinal contra a Covid-19, a população brasileira precisa entender que o governo federal, com apoio dos estados e municípios, possui plenas condições de vacinar com sucesso absoluto toda a população brasileira, desde que haja uma grande união de forças de todos os brasileiros, sem vieses político-partidários, sem interesses pessoais e com grande sentimento humanitário. O desafio é amplo, geral e irrestrito!
“Este artigo expressa a opinião dos autores, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.””