No artigo Mercados de capitais: Reflexões sobre escândalos corporativos, publicado neste Portal Acionista, discorremos sobre três escândalos ocorridos nos Estados Unidos – os casos Texaco, Enron e Worldcom –, o primeiro, ocorrido na década de oitenta, e os demais, no início dos anos 2000; na oportunidade, tecemos breves reflexões sobre os desdobramentos desses escândalos, que prejudicaram, de diferentes formas, os stakeholders. Já no artigo Escândalos corporativos: por que não são antecipados?, comentamos as  razões pelas quais analistas, profissionais de investimentos e investidores não teriam antecipado o recente caso Americanas, ainda sob investigação das autoridades brasileiras.

Neste artigo, o terceiro da trilogia, procuramos refletir sobre as causas organizacionais profundas que podem criar condições para que a contabilidade criativa ocupe o lugar da contabilidade real, aquela baseada nos princípios e normas contábeis vigentes e suportada por documentação hábil. Todas essas causas remetem ao modelo de gestão empresarial que, em nossa jornada como executivas corporativas, conselheiras e colunistas, denominamos Modelo de Gestão Sustentável (MGS).

O MGS, no qual há anos trabalhamos em sua concepção e enriquecimento, objeto da dissertação de mestrado de uma de nós, orquestra as cinco dimensões da organização, constituindo-se em uma espécie de chave de ignição que energiza as seguintes dimensões: 1) modelo de negócio e estratégia; 2) estrutura; 3) processos e tecnologia; 4) projetos; e, 5) pessoas, reconhecimento e cultura. Em contrapartida, modelos de gestão não sustentáveis podem conduzir a performances empresariais sofríveis, comprometer a longevidade da organização e seus negócios. Importante lembrar que essas cinco dimensões mencionadas estão interligadas, conectadas e coordenadas pelo MGS. Dito isso, sigamos com o nosso raciocínio.

Modelos de negócios e estratégias

De maneira resumida, o modelo de negócio é a lógica pela qual uma empresa pretende entregar aos seus clientes produtos e serviços que criam valor, sendo que sem uma adequada estratégia com propósitos claros e genuínos, clientes e mercados serão capturados por concorrentes. Quanto à estratégia, esta pode ser compreendida como o caminho que a organização percorrerá para sair do presente e chegar ao futuro com sucesso, uma rota que deve ser planejada e executada. Aos objetivos estratégicos, associam-se indicadores e metas estratégicos, lembrando que a maior parte de fracassos de estratégias corporativas e de negócios decorrem não do seu planejamento, mas de sua execução.

A teoria do negócio, criada por Peter Drucker, merece ser relembrada, pois exige que os planejadores de uma organização considerem um conjunto de hipóteses fortes, divididas entre três grupos: 1) ambiente de atuação organizacional – sociedade, estrutura social, mercado, clientes e tecnologias; 2) missão da organização; e, 3) competências essenciais requeridas à realização da missão. Desta forma, para que um negócio siga sua jornada do presente ao futuro com sucesso, é preciso tratar essas hipóteses de maneira dinâmica, pois elas mudam – e muito! Disso resulta a importância das estratégias de negócios das organizações empresariais, subordinadas à estratégia corporativa, que criam ajustes e alterações em negócios existentes, levam à criação de novos negócios e, em determinadas situações, até mesmo à extinção ou venda daqueles que não fazem mais parte de seu core business. As estratégias impulsionam a evolução dos modelos de negócios ao longo dessa jornada.

No bojo de um escândalo corporativo, se uma empresa que presta informação a stakeholders apresenta resultados irreais, encantadores (sendo bem comedidas no adjetivo) e baseados em contabilidade criativa, isso pode significar, nas profundezes organizacionais, no âmago da organização, defeitos críticos em seu modelo de gestão, que orquestra os modelos de negócios e as estratégias. Afinal, um MGS assegura o reconhecimento de problemas presentes e potenciais, na construção e implementação de modelos de negócios e de estratégias desconectados do propósito e missão da organização. Através de seus mecanismos de controle, interveem tempestivamente na condução de práticas que não estão alinhadas aos valores, normas, políticas e código de conduta da organização.

Estruturas organizacionais

As estruturas são formas de organizar a distribuição de poder nas organizações. Devem respeitar disposições legais, ser adequadas às regras de governança e gestão e buscar otimização, a fim de favorecer a fluidez de processos organizacionais, evitar superposições de funções, gastos desnecessários e desgastes emocionais de diversas ordens.

Estruturas como conselhos de administração e seus respectivos comitês, conselhos fiscais, diretorias executivas, áreas de contabilidade, auditoria, compliance e relações com investidores são exemplos que podem ser encontradas em organizações de maior porte e com a obrigação de prestar contas aos stakeholders; em outras organizações menores, ter-se-á estruturas mais enxutas. Algumas estruturas de governança e gestão são críticas para evitar fraudes corporativas, tendo sido concebidas e criadas com essa finalidade.

Mesmo assim, em grandes escândalos corporativos, estruturas de governança como conselhos de administração e seus comitês, conselho fiscais e auditorias internas podem falhar. Isso pode acontecer de maneira fraudulenta? Sim, mas não necessariamente a fraude começa desse modo; um problema pode começar, por exemplo, em lançamentos contábeis incorretos; com o passar do tempo, e conforme os resultados da empresa, a ocultação de resultados pode ser a prática deliberadamente adotada. Outro ponto relevante a ser considerado é que conselheiros administrativos e fiscais, ao menos nos primeiros tempos de sua atuação, podem não estar verdadeiramente empoderados, em que pesem suas atribuições legais, especialmente nas empresas cuja principal liderança executiva está muito pouco disposta a ouvir e a falar. Sendo assim, falhas em estruturas que não poderiam falhar podem favorecer fraudes e, se isso ocorre, resta concluir que o problema pode residir no modelo de gestão, que deveria assegurar, em tese, estruturas muito seguras.

Processos e tecnologia

Os processos – fluxos de trabalho estruturados de maneira contínua, com entradas (inputs), processamento e saídas (outputs – organizam atividades econômicas, assegurando a materialização de modelos de negócios e estratégias. A formalização dos fluxos de processos – inputs, outputs, tarefas, responsabilidades e indicadores críticos – é fundamental. Organizações podem alinhar estruturas e processos de modo compulsório, de maneira, por exemplo, que a área de Relações com Investidores corresponda ao processo de Relações com Investidores. Pode-se ter, também, processos transversais, que perpassam várias estruturas, ainda que a coordenação esteja a cargo de uma estrutura específica, como é o caso, por exemplo, do processo de Gestão de Pessoas.

A tecnologia pode impactar significativamente os processos, ao redesenhá-los de maneira radical. Dois exemplos clássicos do redesenho de processos é o atendimento de clientes pela internet, desde que a rede mundial surgiu, bem como as necessidades de proteção da saúde de pessoas que a pandemia COVID criou. A chamada transformação digital, que já vinha ocorrendo em várias empresas, teve seu ritmo tremendamente acelerado ao longo da pandemia e essa aceleração, associada aos intensos cuidados que as empresas tiveram que tomar em prol de colaboradores foi, simplesmente, crucial para proteger e salvar vidas.

Voltando aos escândalos corporativos e à contabilidade criativa, pode-se afirmar, de primeira, que os processos de Governança e Contabilidade falharam, de maneira lamentável, quando se considera a responsabilidade com os stakeholders. Ou falharam inicialmente, por meio de pequenos erros e desvios, ou por seus responsáveis terem adentrado no campo da falta de ética e da fraude. Além disso, outros processos podem ter falhado. O professor Carlos Roberto Kassai (Caio), por nós recentemente entrevistado na Revista RI – Relações com Investidores (Escândalo Americanas: o tsunami de 11/1/2023, edição 270) lembra que o planejamento financeiro e a contabilidade precisam ocorrer de forma integrada, o que ajudaria a prevenir fraudes. Falhas de processos podem decorrer de falhas no modelo de gestão, responsável por criar processos robustos e seguros.

Projetos organizacionais

Os projetos correspondem ao DNA da renovação organizacional e de sua estabilização operacional. São intervenções que, ou modificam processos, ou criam novos processos, tendo começo, meio e fim, estando, ainda, intrinsecamente ligados aos modelos de negócios e às estratégias. Projetos devem ser acompanhados em sua implantação, pois podem ser desviar do planejamento original, já que riscos existem e podem afetar gastos, prazos e expectativas envolvidas.

Ademais, deve-se tomar imenso cuidado com a confusão prática entre processos e projetos; em inúmeras situações, inclusive, é altamente recomendável separar as equipes neles envolvidas. Ponto de grande atenção: é quase sempre na dimensão dos processos & tecnologia e dos projetos que as melhorias necessárias nos demais fundamentos do Modelo de Gestão Sustentável (MGS) são implementadas, na realidade prática das organizações.

Como os projetos podem conduzir a uma má performance empresarial? Fundamentalmente, de três formas: 1) se não forem criados onde se fizerem necessários; 2) se forem criados, mas de maneira a não atender o que deles se espera; e, 3) se forem indevidamente criados, sem necessidade, comprometendo as finanças e demais recursos empresariais. Em um escândalo corporativo, sempre serão cabíveis as seguintes perguntas: 1) criamos os projetos que se faziam necessários? 2) implementamos os projetos de maneira satisfatória?; e, 3) durante a fase de implantação dos projetos, foram realizados os testes de integridade e homologação mandatórios? Estas são as perguntas que um Modelo de Gestão Sustentável (MGS) recomendaria fazer.

Pessoas, reconhecimento e cultura

Muitos estudiosos das organizações têm se debruçado sobre a importância das pessoas para os objetivos organizacionais, tendo reconhecido, de maneira ampla, que estas necessitam ser atendidas em necessidades básicas e elevadas, como bem representa a famosa pirâmide de Maslow (ainda que se questione a hierarquia dessas necessidades, conforme o momento). Além disso, não parece haver dúvida de que o reconhecimento do esforço das pessoas nas organizações é imprescindível, via indicadores e metas, ligados à administração da estratégia. A cultura, especificamente, “a forma como fazemos as coisas por aqui”, como muitos estudiosos costumam dizer, é um elemento que favorece a lógica de uma gestão sustentável e a nós parece incorreto entender que ela não pode ser objeto de planejamento e implementação de ações. A cultura organizacional não nos parece, apenas, resultado de tudo o que mais se fizer em prol da organização, cremos que há razoável espaço para a gestão cultural nas organizações.

Neste ponto, gostaríamos de mencionar entrevistas recentes que fizemos na Revista RI (Escândalo Americanas: o tsunami de 11/1/2023, edição 270, novamente), com os professores Alexandre Di Miceli e Eliane Aleixo Lustosa, os quais comentaram, entre outras, questões relacionadas a pessoas, remuneração e cultura. Nessas entrevistas, eles refletiram sobre práticas de remuneração de dirigentes, que podem induzir comportamentos por demais arriscados. E refletiram sobre a possibilidade desse tipo de prática criar, com o tempo, culturas que chamaríamos aqui de tóxicas ou não sustentáveis. Também recentemente, durante aula de Finanças para Conselhos do Programa de Formação e Certificação de Conselheiros (PFCC) da Board Academy, o conselheiro consultivo Eduardo Borba observou: “Compensation drives behavior! Se os executivos são remunerados apenas pelo curto prazo, não haverá olhar para o futuro”.

Com base no exposto, entendemos que as falhas da administração de pessoas, de sua remuneração e da cultura, podem, a nosso ver, esconder falhas mais profundas de modelos de gestão, que deveriam assegurar respeito às pessoas, alinhamento de seus interesses aos melhores interesses da organização e a criação de uma cultura organizacional saudável, focada em resultados sustentáveis, garantindo o respeito com os stakeholders.

Conforme se percebe, falhas em modelos de gestão podem ocorrer de variadas maneiras. Desejável seria que os líderes organizacionais implementassem Modelos de Gestão Sustentáveis (MGSs), visando a criação de um futuro organizacional com escolhas assertivas, conduzindo ao sucesso e à longevidade corporativa. E destacamos, por fim, a importância do direcionamento efetivo da Administração, o maestro da Orquestra Societária, por meio do enfrentamento de dificuldades presentes ou potenciais, bem como do cuidado com as pessoas, da integração entre as cinco dimensões do MGS e da condução por um importante instrumento de gestão: o PDCA (Plan, Do, Control, Act), que abrange planejar, executar, controlar e agir.

Finalizamos sugerindo aos nossos leitores as matérias abaixo, que tratam do caso Americanas (edições 268 a 270 da Revista RI), do Modelo de Gestão Sustentável (MGS) e da Orquestra Societária, uma organização da qual o MGS é o epicentro (edições 218, 243 e 234 da mesma Revista).

Revista RI • Nº 270 • ABR 23 • ESCÂNDALOS CORPORATIVOS: COMO A GOVERNANÇA AJUDA A PREVENIR?

Revista RI • Nº 269 • MAR 23 • TSUNAMIS CORPORATIVOS: POR QUE ACONTECEM? POR QUE NÃO SÃO ANTECIPADOS?

Revista RI • Nº 268 • FEV 23 • ESCÂNDALO AMERICANAS: O TSUNAMI DE 11/01/2023

Revista RI • Nº 254 • SET 21 • VISÃO DA EMPRESA POR DENTRO E POR FORA: PAUSA PARA REFLEXÃO

Revista RI • Nº 243 • AGO 20 • PREPARANDO A ORGANIZAÇÃO PARA O FUTURO

Revista RI • Nº 218 • FEV 18 • INFONIA CORPORATIVA: O GRAN FINALE

Sugerimos ainda a leitura do seguinte artigo, que apresenta uma síntese de quatro entrevistas sobre o nosso projeto ESG – Uma partitura que está sendo escrita:

Revista RI • Nº 266 • NOV 22 • SUSTENTABILIDADE & ESG:  UMA JORNADA DE APRENDIZADO

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