No dia 11 de janeiro de 2023, o Fato Relevante publicado pela Americanas S. A. causou estupefação: foram apuradas “inconsistências em lançamentos contábeis”, relacionadas a esta sociedade empresária, da ordem de R$ 20 bilhões. A partir da comunicação, uma profusão de notícias, opiniões e julgamentos preliminares emergiu, de variados veículos de mídia, especializados ou não em questões dessa natureza, no Brasil e no exterior. Ainda não se tem informações que permitam avaliar o caso, com bom nível de entendimento, e o assunto está sob apuração da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e demais autoridades competentes.

O caso Americanas e seus desdobramentos poderão se tornar o mais notável fulcro de análises sobre a governança corporativa e a sustentabilidade, nas esferas econômica e social, de uma empresa do mercado de capitais nacional, pois:

  • a Companhia aderiu ao Novo Mercado da B3, a bolsa de valores brasileira, o nível mais exigente de regras de governança do País;
  • a empresa tem um conjunto de mais de 150 mil acionistas;
  • tem fundos de pensão entre os seus investidores, que tiveram significativas perdas econômicas em seus portfólios de investimentos;
  • conta com mais de 44 mil empregados – bem mais do que a Enron, cujo caso, que ganhou o noticiário global quando ocorreu, no início dos anos 2000, é abaixo descrito;
  • tem compromissos com um grande número de fornecedores de todos os tamanhos, que dependem da Companhia para cumprir suas obrigações; e,
  • tem dívidas de grande monta com várias instituições financeiras, privadas e estatais.

Conforme se percebe, muitas pessoas podem ser afetadas pelo default de uma empresa com as características da Americanas.

Casos corporativos de grande impacto nos mercados de capitais ao redor do Planeta – considerando-se aqui os aspectos negativos do mencionado impacto – têm ocorrido ao longo do tempo e o caso Americanas está longe de ser o único. Esses eventos, relacionados a empresas participantes dos mercados de capitais, têm surgido por variados motivos. E quando ocorrem, podem produzir uma ampla gama de reações e a desconfiança de investidores e cidadãos, sendo necessário que haja apuração aprofundada e medidas assertivas para fortalecer os mercados e assegurar a confiança.

Neste artigo, discorremos brevemente e sem maior nível de detalhamento sobre três escândalos corporativos clássicos, com ampla repercussão nos mercados financeiros e de capitais, os quais resultaram em lições aprendidas e firmes reações dos criadores das regras do jogo, formais e informais, para mudar o status quo. Lembrando que o caso Americanas, bola da vez – e no Brasil –, a depender das apurações e desdobramentos, pode exigir medidas para melhorar as atuais regras do mercado de capitais e das empresas que o integram.

Caso Texaco (EUA, anos 80)

Em 1984, o conselho de administração e a diretoria executiva da Texaco, aproveitando-se da redação, à época, do American Companies Act, a lei corporativa dos EUA, recompraram ações da Companhia por preço muito acima do seu valor de mercado. Essa recompra de ações teria custado aos acionistas da Texaco por volta de US$ 137 milhões de ágio. Por quê teria sido feita uma operação tão lesiva aos acionistas? Para evitar a ameaça de takeover hostil do Bass Brothers, acionista não controlador (minoritário) com poder financeiro, que ameaçava as posições dos integrantes da cúpula corporativa. Esse tipo de operação é conhecida nos mercados como greenmail, algo como chantagem verde, no sentido de chantagem pelo dinheiro.

Com apoio na esfera política, foi iniciado um movimento robusto, capitaneado pelo California Public Employes Retirement System (CalPERS), um dos principais fundos de pensão dos EUA. O conselho administrativo do CalPERS se posicionou com firmeza: a instituição não mais aceitaria algo dessa natureza em outras companhias de sua carteira de investimentos, esperando, ainda, que essas empresas adotassem práticas que respeitassem os direitos dos acionistas. E o CalPERS iniciou e capitaneou uma longa batalha, com maestria política e destaque para a participação em conselhos de administração de companhias entre outras iniciativas.

Rolf H. Carlsson, na obra Ownership and value creation, imputa ao caso Texaco o status de ponto de mutação, que deflagrou, nos EUA, um forte movimento de ativismo de investidores institucionais, como fundos de pensão e fundos mútuos, em prol da governança corporativa. Carlsson destaca que o CalPERS introduziu o conceito de shareowner (proprietário da ação), em substituição ao de shareholder (detentor da ação). O movimento pela governança iniciado nos EUA, no estado da Califórnia, a partir do caso Texaco, ganhou o mundo.

Caso Enron (EUA, anos 2000)

A Enron foi criada em 1985 e se tornou um grande player de energia (principalmente) nos EUA, com ativos fora daquele País e, inclusive, no Brasil. Chegou a ser a empresa mais admirada dos EUA, com grande valor de mercado e empregando mais de 20 mil pessoas.  Mas se aparentemente tudo ia bem, a realidade corporativa – a parte oculta do iceberg – era diferente. Em 16 de outubro de 2001, a sociedade empresária divulgou perdas de US$ 638 milhões no terceiro trimestre do ano e anunciou uma redução no seu patrimônio líquido de US $ 1.2 bilhão. Andrew Fastow, principal executivo financeiro, apresentou uma explicação ao mercado que não foi considerada convincente pela Securities Exchange Comission (SEC); esta abriu um procedimento para entender o que estaria ocorrendo que, em pouco tempo, se tornou investigação formal.

A situação da Enron se revelou cada vez pior nas semanas seguintes. Uma empresa concorrente com intenção de comprar a Companhia, a Dynegy, desistiu. O mercado entendeu que a Enron se encontrava em estado pré-falimentar e, em 28 de novembro de 2001, a ação da Companhia valia apenas US 1, isto é, 1,2% do seu valor no final de 2000. A queda da Enron arrastou a Arthur Andersen, uma das maiores empresas de auditoria do mundo. E o caso teve implicações políticas: em janeiro de 2002, o Congresso dos EUA realizou uma audiência sobre o assunto e, naquele mesmo mês, tornou-se público que a Companhia teria ajudado partidos políticos da Grã-Bretanha.

A Enron parecia um caso de sucesso, com líderes conhecidos, especialmente Kenneth Lay, sócio principal, CEO e, posteriormente, chairman, falecido em 2006, após algumas condenações no âmbito do Poder Judiciário, e Jeffrey Skilling, CEO, que ficou preso durante 12 anos. Entretanto, a realidade era outra: a de várias fraudes praticadas por dirigentes, como a manipulação de dados contábeis, para parecer que a empresa lucrava. Skilling e Fastow adotaram a prática mark to market ou marcação a mercado, por meio da qual, no âmbito da Enron, receitas de operações futuras eram contabilizadas no presente daquele tempo, inflando-se lucros. Além disso, a contabilidade ocultava dívidas, não consolidadas em nível corporativo, via arranjos societários com sociedades de propósito específico (SPE’s). Não faltou o uso de operações arriscadas com derivativos. E muito mais. Uma intervenção do estado no mercado de capitais e nas empresas nele operantes viria em pouco tempo, a Lei Sarbanes-Oxley (2002), em função do ocorrido na Enron, na Wordcom e em outras empresas.

Caso WordCom (EUA, anos 2000)

A WorldCom foi criada em 1983, com a finalidade de explorar telecomunicações de longa distância. Fez várias aquisições de empresas de telecom, até se tornar a segunda maior operadora do setor nos EUA, além de líder na internet. O nome WorldCom passou a ser usado a partir de 1995. A personalidade do investidor e presidente executivo canadense Bernard Ebbers, também conhecido como o cowboy das telecomunicações, e as várias aquisições realizadas –  por vezes, por meio do uso de ações –, criaram uma companhia caracterizada por autocracia, várias culturas internas e controle de riscos sofrível. O crescimento da empresa, nos EUA e em outros países, incluindo o Brasil, não implicou crescimento de desempenho.

Comandada de 1985 até abril de 2002 por Ebbers, a WorldCom não performou conforme seus executivos projetavam: os preços das comunicações de longa distância caíram, à luz da forte concorrência entre empresas locais e da telefonia móvel, cujo uso se intensificou. Os serviços de internet, por seu turno, passaram ao largo dos resultados esperados. Há que abrir um parêntesis, neste ponto, para observar que, de 1995 a 2000, formou-se a famosa bolha das empresas pontocom, cujas ações de valorizaram fortemente nos mercados de capitais; porém, sem correspondência com o valor intrínseco. Em 2000, a realidade se tornou clara, por fim, e várias empresas pontocom tiveram, adiante, que passar por processos de venda, fusão ou falência.

Com a quebra da bolha, em 2000, e diante das pressões de investidores por resultados, os dirigentes da WordCom adotaram práticas fraudulentas para que a Companhia parecesse ter bom desempenho. Em 2001 e parte de 2002, com ciência de Bernard Ebbers e sob a coordenação de Scott D. Sullivan, diretor financeiro, a Companhia fez operações indevidas, a exemplo de contabilizar despesas como investimentos. Em 25 de junho de 2002, anunciou ao mercado uma revisão de US$ 3,85 bilhões nas demonstrações financeiras, o que causou perplexidade a quem não acompanhava a empresa mais a fundo. Doravante, a trajetória seguiria tumultuada e em linha descendente. Bernard Ebbers, Scott Sullivan e outros executivos envolvidos com as fraudes foram penalizados pela Justiça dos EUA. Ebbers e Sullivan foram condenados, respectivamente, a 25 e 5 anos de prisão, sendo que Sullivan fez um acordo para depor contra Ebbers, tendo ficado preso mais de 13 anos e falecido em 2020.

Breves reflexões sobre os três casos anteriores

Aos três casos anteriormente sintetizados, clássicos e presentes em estudos sobre governança corporativo, vários outros podem ser adicionados, tendo ocorrido em distintos países, abrangendo empresas privadas e estatais e variados setores da economia. Selecionamos esses três exemplos por serem ilustrativos de como, a partir do que ocorreu, as regras do jogo nos mercados de capitais e empresas que nele operam mudaram e, a nosso ver, para melhor.

Se o caso Texaco culminou no ativismo de investidores institucionais nos EUA e em um movimento pela governança corporativa que se espraiou por mercados de capitais e empresas em vários países pelo Planeta, os casos Enron e Worldcom entre outros resultaram em uma intervenção dura do estado norte-americano no mercado de capitais daquele País: a criação do Sarbanes-Oxley Act, conhecida no  Brasil como Lei Sarbanes-Oxley, já em 2002, que obrigou companhias com ações em bolsas de valores dos EUA e de outros países a criarem sistemas de controle e a divulgarem riscos para os investidores.

Refletindo sobre os três casos antes descritos, indagamos: quais seriam os principais remédios para lidar com tais situações, de modo a reduzir riscos futuros?

Em nossa opinião, as várias medidas possíveis em âmbito legislativo, da CVM, da B3 e de outras instituições podem ser resumidas em três linhas de ação, mais amplas, que valem para todos esses agentes:

1) identificar falhas e o aprendizado delas decorrente – as lições aprendidas;

2) criar regras do jogo mais efetivas na prevenção de problemas, que fortaleçam os mercados e as empresas deles participantes; e,

3) penalizar duramente onde isso for justo e pertinente, com os meios formais corretos.

Observamos ainda que no caso Texaco, a mudança em regras do jogo veio, ao menos inicialmente, de investidores institucionais e de sua nova postura em relação a desmandos corporativos; ou seja, as regras mudaram especialmente a partir de movimentos do próprio mercado de capitais e de seus agentes. Já nos casos Enron e WordCom, nos quais se apuraram fraudes diversas, houve a intervenção do estado, por meio da Lei Sarbanes-Oxley, que teve implicações não apenas em empresas dos EUA, mas também naquelas com operações em bolsa de valores nos EUA. Cada caso requererá as reações cabíveis e mais efetivas, conforme o ocorrido, importando a efetiva mudança para melhor.

Outra consideração a ser feita sobre os casos Enron e WorldCom diz respeito à presença de lideranças com nomes fortes no mercado, conexões políticas (este parecia o caso de Kenneth Lay, da Enron) e que, com o passar do tempo, com as revelações dos fatos e as penalizações de âmbito judicial, tiveram suas reputações abaladas. O que significa que heróis corporativos nem sempre são, de fato, heróis – ao contrário. A quem se interessar, sobre o caso Enron especificamente, sugerimos assistir ao documentário Os mais espertos da sala, onde se pode perceber, com mais riqueza de detalhes, o que um evento como a derrocada de uma grande empresa pode envolver e criar, destruindo sonhos, o futuro de pessoas, reputações e outros ativos tão valiosos que é quase impossível precificar.

Finalizamos este breve artigo desejando que o caso Americanas S. A., cujas informações ainda se encontram sem maior nível de esclarecimento, já que as apurações ainda seguem, resulte na continuidade da Companhia em boas condições de governança e gestão – afinal, dela dependem muitos stakeholders –, bem como no fortalecimento do mercado de capitais nacional e de suas empresas, com a devida penalização daqueles que, porventura, assim merecerem.

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