Caro(a) leitor(a),

Há duas semanas, mais precisamente no início da tarde de sexta-feira 9 de agosto, recebi, no meu celular, uma mensagem de WhatsApp de um amigo, F. M.

Ele se encontrava numa das salas de embarque do aeroporto estadual de Ribeirão Preto, prestes a embarcar para Guarulhos em um ATR-72 da companhia aérea Voepass (antiga Passaredo), quando recebeu um vídeo com imagens, que por sinal viralizaram na internet em todo o mundo, de um bimotor turboélice, idêntico ao que ele iria pegar, despencando dos céus em parafuso chato sobre um condomínio de Vinhedo.

Mais do que depressa, F. M. desistiu de seu voo e foi para a rodoviária de Ribeirão pegar um ônibus para São Paulo capital, onde reside.

Tal como todo mundo, me impressionei com as imagens do ATR caindo. É costume das pessoas dizerem:

Caiu um avião da Amalgamated Airlines no Arizona.” 
“Um bimotor da Táxi Aéreo Chumbinho caiu no interior do Maranhão.”

Só que, em boa parte das vezes, não é uma queda e sim uma colisão com um obstáculo próximo à pista, pouco depois da decolagem ou antes do pouso, e até mesmo um choque no ar de duas aeronaves, evento que vive ocorrendo em shows aéreos.

Esse não! O ATR da Voepass caiu mesmo. Perdeu a sustentação e, com isso, deixou de ser uma aeronave. Isso aconteceu devido ao acúmulo de gelo nas asas.

Todos os aviões têm a parte superior das asas curva convexa e inferior, plana.

De acordo com o princípio do físico suíço Daniel Bernoulli (1700/1782), que poderíamos classificar como o verdadeiro descobridor da aviação, o fluxo de ar correndo mais rápido na parte superior da asa, justamente por ser um percurso maior do que na parte inferior, chata, provoca uma sucção que dá sustentação aos aviões.

Se o caro amigo leitor, ou amiga leitora, quiser testar esse princípio, basta cortar uma tira de papel, semelhante a meio palmo de serpentina, prendê-la com a boca. Ao soprá-la por cima, a tira subirá, ao invés de se vergar para baixo, como seria de se supor.

Pois bem, quando o gelo se acumulou nas asas do ATR da Voepass, ele deixou de ser um avião.

Perscrutando as imagens da queda, dá para se perceber que a aeronave caiu sem nenhuma velocidade horizontal e com uma velocidade vertical não muito alta. Tanto é assim que os para-brisas da cabine de comando não foram destruídos no choque contra o solo em Vinhedo. 

Se o avião tivesse caído sobre uma floresta densa, e amparado pelas árvores, alguns passageiros ou tripulantes poderiam ter escapado com vida.

Voltando ao dia do desastre, pouco depois de receber as imagens pelo celular, fui contatado pela produção do Jornal Nacional, que me solicitou uma entrevista.

Uma equipe do JN veio aqui em casa e expliquei que, por ser um turboélice, o ATR voava numa altitude correspondente à maior parte das nuvens de tempestade, nas quais há gelo e formação de granizo.

Se voasse mais alto, como os aviões a jato, estaria acima dessa camada crítica. Caso fosse uma aeronave a pistão, voaria abaixo da tempestade. Isso não é uma regra inflexível, mas é o que normalmente acontece.

Se assistirmos documentários da Segunda Grande Guerra, podemos perceber diversos bombardeiros caindo em parafuso chato, por terem sofrido grave perda estrutural (ruptura de uma asa, leme de direção ou profundor) causada por fogo inimigo, hipóteses nas quais eles deixam de ser aviões e caem rodopiando como o ATR da Voepass.

Só que, nessas aeronaves de guerra, os pilotos, bombardeiros e metralhadores estão próximos a uma porta ou janela de fuga e pulam de paraquedas.

Quando, no final da década de 1960, eu era aluno do aeroclube do Carlos Prates, em Belo Horizonte, meus colegas faziam brincadeiras macabras sobre parafusos chatos.

Não vá entrar em parafuso chato!” dizia um. 
Quebre o pescoço num parafuso chato!”, augurava outro.

Eu detestava fazer parafusos, mas era manobra obrigatória para se tirar o brevê de piloto privado. Na minha primeira aula de pilotagem, o instrutor, Carvalho, já comandou um parafuso para meu profundo terror.

Certa ocasião, outro instrutor, Albinatti, estando todos os alunos reunidos no pátio de manobras, me vendo cartear vantagens, ordenou:

Ivan, pegue o RVI (um Cap 4, monomotor de tecido endurecido com dope, laca plastificante, de dois lugares apelidado de Paulistinha), suba a três mil pés (aprox. mil metros) e comande um parafuso bem em cima da gente.”

Em outra ocasião, eu estava treinando curvas de grande inclinação, manobra na qual os comandos se invertem (os pedais passam a fazer o avião subir ou descer e o manche – joystick – a girar o nariz para a direita ou esquerda), sobre o aeródromo de Lagoa Santa, MG, quando o avião entrou em parafuso acidental.

A manobra já ia se transformando em parafuso chato, quando meu ex-cunhado, Eduardo Bouchardet, já falecido, mais experiente do que eu, gritou: 

“Larga, larga tudo!”, e corrigiu a manobra.

Como as duas caixas-pretas do avião da Voepass (CVR – cockpit voice recorder e FDR – flight data recorder) foram recuperadas, as causas dessa tragédia em Vinhedo serão esclarecidas nos mínimos detalhes.

Um forte abraço,

Ivan Sant’Anna

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