Washington, DC – três da madrugada do domingo passado. Faltavam ainda quase quatro horas para o nascer do sol na capital dos Estados Unidos.
Ao invés da carreata de limusines e SUVs habituais que transportam o presidente, um carro totalmente descaracterizado, com vidros fumê que impediam a visão de seu interior, deixou a Casa Branca em direção de uma base aérea nos arredores da cidade.
No interior do veículo, além de Joe Biden, apenas o motorista e dois agentes do Serviço Secreto.
Algum notívago ou madrugador que estivesse passando em frente ao prédio do número 1600 da avenida Pensilvânia, onde fica a residência oficial mais famosa do mundo, jamais poderia imaginar que Joe Biden estava a bordo. O mais provável é que supusesse que fosse apenas um agente secreto indo para casa após o término de seu turno de serviço.
O presidente poderia ter se deslocado de helicóptero, partindo do jardim da ala sul da Casa Branca, como fazia quase todos os dias, mas isso chamaria um mínimo de atenção.
Com praticamente nenhum trânsito àquela hora, ainda mais sendo domingo, o carro presidencial levou pouco mais de 30 minutos até o aeroporto, que não era a habitual base aérea de Andrews, onde fica o Boeing 747-200B conhecido erroneamente como Air Force Number One.
Erroneamente, escrevo eu, porque esse nome é dado à aeronave que conduz o presidente e não a alguma específica.
Ainda no interior de um dos hangares, o presidente Biden entrou no jato que o transportaria, em voo direto, para uma base americana em Ramstein, no sudoeste da Alemanha.
Tratava-se de um Boeing 757 da USAF – United States Air Force – aeronave cuja nomenclatura militar é C-32.
O centro de controle de Leesburg, no estado da Virginia, responsável pelo tráfego no espaço aéreo na região da capital federal, foi informado pelos pilotos da procedência e do destino do voo, mas não de que se tratava do Air Force Number One, por estar transportando o presidente dos Estados Unidos.
Além dos pilotos e comissários, havia outras pessoas a bordo, fazendo parte da comitiva presidencial: um grupo de agentes secretos e assessores, uma pequena equipe médica e dois jornalistas que juraram manter sigilo total sobre a viagem, tendo inclusive seus celulares sido confiscados pelos seguranças. Eram eles Sabrina Siddiqui, redatora do Wall Street Journal, e o fotógrafo Evan Vucci, da Associated Press.
A primeira etapa do voo durou pouco menos de oito horas, tendo a parada em Ramstein demorado apenas o tempo necessário para reabastecimento do Boeing.
De Ramstein, o inusitado e disfarçado Força Aérea Número Um voou até o aeroporto de Rzeszow-Jasionka, na ponta sudeste da Polônia, de onde o presidente Joe Biden e sua pequena comitiva foram levados até uma estação de trem, próxima à fronteira com a Ucrânia.
No trajeto de Ramstein a Rzeszow-Jasionka, e no hangar do aeroporto polonês, as persianas de plástico do Boeing permaneceram fechadas.
Os jornalistas nem souberam em que local estavam.
As dez horas seguintes foram percorridas por ferrovia, obviamente em um trem especial, exatamente no rumo leste (90º), em direção a Kiev.
Bem antes do comboio de oito vagões cruzar a fronteira, após a qual entraria no território de um país em guerra, o Kremlin foi avisado que o presidente norte-americano estava em solo ucraniano.
Isso evitaria um incidente casual, no qual Joe Biden poderia ser morto, algo como um ataque de um míssil ou drone russo a um trem ucraniano em movimento, coisa corriqueira num conflito entre dois países vizinhos. E Vladimir Putin pode ser belicoso, mas não louco a ponto de arriscar o mundo a uma Terceira Guerra Mundial.
A jornalista e o fotógrafo americano já haviam recebido seus celulares de volta e puderam dar a notícia para o mundo.
A composição chegou a Kiev às 8h07, hora local, sendo Biden recebido, na estação, pelo presidente Volodymyr Zelensky.
Joe Biden ficou apenas algumas horas em Kiev, conferenciando com Zelensky. Iniciou então a viagem de regresso, que se deu sem incidentes.
Embora a visita de Biden tenha tido enorme repercussão na imprensa americana e internacional, em nada afetou as bolsas de valores.
O mesmo não ocorreria se o presidente americano tivesse sido atacado. Nessa hipótese, o mercado teria levado um tombo gigantesco.
Viagens secretas e arriscadas de chefes de Estado não são incomuns.
Durante a Segunda Guerra do Golfo, o então presidente norte-americano George W. Bush decidiu passar o Thanksgiving Day (Dia de Ação de Graças) em Bagdá, junto às tropas norte-americanas, ocasião em que o próprio Bush serviu peru aos soldados.
Dessa viagem, nem a mulher do presidente, Laura, ficou sabendo com antecedência, assim como não foram informados o pai do chefe de estado, ex-presidente George H. W. Bush.
A versão oficial era de que Bush tinha viajado para um rancho no Texas.
O voo de Washington a Bagdá foi feito no Força Aérea Número Um titular, sob as seguintes condições:
Se algum órgão da imprensa americana noticiasse a viagem (havia diversos jornalistas a bordo do 747 presidencial), a aeronave faria meia-volta e regressaria aos Estados Unidos.
Cinco anos mais tarde, numa outra viagem de Bush Filho a Bagdá, cidade agora sob domínio (precário, é bom que se esclareça) americano, durante uma coletiva de imprensa um jornalista iraquiano lançou dois sapatos em direção ao presidente americano.
George Bush não perdeu a classe, limitando-se a desviar o rosto dos dois projéteis, que poderiam conter algum explosivo ou qualquer outra substância letal.
O mercado financeiro não dá muita importância a essas viagens e incidentes, desde que não resultem num evento trágico de grandes proporções, como uma guerra, por exemplo.
É bom lembrar que, em 28 de junho de 1914, o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, em Sarajevo, na Bósnia, foi o estopim da Primeira Guerra Mundial.
O incidente e suas consequências provocaram o fechamento da Bolsa de Valores de Nova York por quatro longos meses, devido, entre outras razões, à possibilidade de quebra de instituições financeiras com raízes europeias.
Um ótimo fim de semana para todos,
Ivan Sant’Anna
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