Caro(a) leitor(a),
Quem está acompanhando esta série Terra de fronteira, sabe que terminei a segunda parte na mesquita de Lahore, durante minha viagem ao Paquistão, em 2008, fazendo contato com um imã islâmico de aproximadamente 90 anos, que se ofereceu para ser meu guia.
Logo no início, paramos junto a uma redoma que continha algumas poucas mechas de cabelo.
“They are supposed to be from the Prophet (Presume-se que elas sejam do Profeta – Maomé)”, ele não parecia acreditar muito na autenticidade da relíquia.
Como havia um arco que começava no rés do chão de mármore e, após percorrer toda a enorme cúpula, terminava no chão do outro lado, o imã me levou até uma das extremidades e me fez encostar o ouvido na parede.
“Agora fique aqui que eu vou para o lado oposto.”
Já na outra ponta, ele começou a conversar comigo. Suas palavras percorriam o arco e chegavam aos meus ouvidos, como se estivéssemos conversando em walkie talkies, sem que ninguém pudesse ouvir nossas vozes.
“Você reparou que aqui dentro da mesquita está fresquinho?”, ele perguntou em seguida. “Venha conhecer nosso aparelho de ar-condicionado.”
Em toda a superfície da parede do domo da mesquita havia furinhos, em forma de cones, cujo lado externo tinha um diâmetro maior do que o interno. Isso, compressão do ar, fazia com que ele esfriasse ao ser comprimido, tal como acontece em nossos aparelhos de refrigeração: geladeira, freezer e ar-condicionado.
Sete anos antes, ao me hospedar na casa de um grande amigo, Maurício Salles Macedo, o maior gênio de engenharia (sem ser engenheiro) que conheci, em Rio Verde, no oeste de Goiás, já tomara conhecimento desse sistema de resfriamento através de furinhos cônicos, cujo combustível era apenas o vento.
Quando terminamos a visita e saímos da mesquita, perguntei ao imã se ele ficaria ofendido se eu pagasse por seus serviços de guia.
“Claro que não”, ele respondeu prontamente. “É desse trabalho que tiro meu sustento.” Então saquei de um dos bolsos de meu colete uma nota de dez mil rúpias, que equivalia a aproximadamente 10 dólares.
Imediatamente, o Naveed arrancou a nota de minhas mãos, a repôs no meu colete e deu ao imã uma cédula de 500 rúpias.
“Ele estava te roubando”, o fixer me disse, como se não tivesse partido de mim a iniciativa de dar a gorjeta de dez mil. Jamais esquecerei a fisionomia de decepção do imã com a atitude do Naveed.
Naquela mesma data, 7 de outubro, à noite, fomos jantar, na Cidade Velha de Lahore, num restaurante, o Cooco’s Den & Cafe, que provavelmente não tem similar no mundo.
Na rua, aonde chegamos com o Islam e seis seguranças, que permaneceram juntos ao Mercedes e aos jipes de escolta, havia dois caldeirões gigantes, alimentados por bicos de gás.
Num deles, havia água fervente; no outro, óleo, borbulhando de tão quente. O prédio do restaurante tinha seis andares, que logo teríamos de subir por uma escada externa, em caracol. Servira como bordel na época da ocupação inglesa, encerrada em 1947.
As mesas ficavam lá em cima, no terraço. Quando um dos fregueses escolhia seu prato, um garçom descia o pedido em uma bacia pendurada numa corda, bacia essa que era capturada por um dos cozinheiros.
Ele então pegava a matéria-prima (um frango inteiro, carne de gado em cubos, carneiro, cabrito etc.) subia numa escada do tipo V invertido e dispunha a carne na água fervendo, se a intenção fosse cozer, ou no olho fervendo, se fosse fritar.
Quando a fritura, ou o cozimento, terminava, ele, de cima da escada, dava três puxões na corda e a comida subia na bacia para o terraço.
Como, segundo o Naveed, eu era um escritor famoso, de um país longínquo chamado Brasil, o dono do estabelecimento, Iqbal Hussein, que era também pintor e poeta, sentou-se à mesa conosco.
Ele me mostrou o cardápio e me indicou a especialidade da casa, escrita em caracteres urdus. Temerariamente, aceitei a sugestão.
Pouco menos de meia hora mais tarde, eu tinha à minha frente um cérebro de cabrito cozido, acompanhado de arroz e naan (pão oleoso, típico do Paquistão).
Temendo que eu recusasse a iguaria, Naveed, que pedira um kebab de carneiro, disse baixinho em meu ouvido: “Finge que é iogurte e come. Caso contrário, o senhor Hussein poderá se sentir ofendido.”
Comi tudo alternando cada garfada com goles de água mineral, como se fosse um remédio.
No dia seguinte, quarta-feira, oito de outubro, fomos até a fronteira com a Índia assistir à cerimônia “Closing of the border”, que acontece na hora do pôr do sol.
Cheguei a pisar a um palmo de distância do território indiano.
A solenidade consiste em soldados dos dois países arrearem suas respectivas bandeiras e um multidão de cada lado do marco divisório torcendo para que seus soldados terminem de dobrar sua bandeira primeiro.
Ainda ficamos mais um dia em Lahore, após o qual partimos para Faisalabad e Multan, oportunidade em que aconteceram coisas interessantes.
Mas isso fica para a crônica da próxima semana…
Um forte abraço para todos vocês, caros leitores.
Ivan Sant’Anna