Uma economia capitalista opera por meio de um conjunto de estruturas com papeis determinados. Quais são essas estruturas? São elas, principalmente, o Estado, as empresas, os mercados, as redes, as associações e as comunidades. Tais estruturas têm papeis específicos na economia e procuram reduzir os riscos das transações econômicas que ocorrem no dia a dia, a cada momento, envolvendo pessoas físicas e jurídicas.
Quais são os principais papeis das estruturas supracitadas? Quais são suas principais imperfeições? Abaixo, procuramos responder a essas duas perguntas:
1) O Estado é responsável por prestar serviços públicos imprescindíveis para a sociedade, criando as regras do jogo legais (Poder Legislativo), assegurando seu cumprimento nas eventuais contendas entre agentes (Poder Judiciário) e administrando recursos arrecadados para que os cidadãos possam ser bem atendidos e protegidos em várias frentes (Poder Executivo). Ocorre que as organizações do Estado podem ser capturadas para favorecer interesses específicos, em detrimento dos cidadãos, além de serem ineficientes.
2) As empresas, por seu turno, são responsáveis pela produção de bens e serviços que tornam a vida melhor e fazem jus a uma remuneração pelo seu trabalho. São os principais vetores de criação de qualidade de vida e conforto para os seres humanos. Há que reconhecer, porém que elas podem ser muito lentas em suas reações ao ambiente externo, excessivamente burocratizadas, ineficientes e, ademais, injustas com stakeholders (públicos relevantes). Os escândalos de governança corporativa de várias companhias ao redor do Planeta e as quebras empresariais em função de estratégias e/ou modelos de gestão sofríveis mostram como mesmo grandes organizações falham.
3) No que tange aos mercados, estes são ambientes de compra e venda de produtos e serviços e devem favorecer essas transações, reduzindo seus riscos. São exemplos o mercado de veículos de uma região ou localidade e o mercado de ações de um país. Vários mercados precisam ser regulados, visando moderar comportamentos e reduzir o risco de lesões econômicas entre as partes. Contudo, mesmo importantes como uma espécie de “mão invisível” regulando boa parte dos preços da economia, conforme a visão clássica de Adam Smith, os mercados falham. Que o digam os milhares de acionistas da empresa Enron, que chegou a ser a mais admirada dos EUA, até que as ações desonestas de alguns de seus principais executivos foram expostas ao público.
4)Redes são estruturas integradas por vários agentes, quando essa integração é vantajosa e tornam melhores suas operações. Como exemplos, mencionam-se a rede constituída por uma montadora de veículos e seus fornecedores de autopeças, bem como aquela integrada por um grande supermercado e seus fornecedores de produtos para prateleiras. Ao mesmo tempo, redes podem ter grande desequilíbrio de poder entre integrantes, com todas as desvantagens disso decorrentes. Nos dois exemplos citados, registra-se forte assimetria de forças entre os contratantes e os contratados respectivos.
5) Quanto às associações, elas representam interesses de grupos específicos, como os sindicatos patronais e aqueles de trabalhadores. Entretanto, associações podem, ou exagerar, ou ser inoperantes ou quase isso na defesa de interesses de seus representados. Elas também podem ser capturadas por interesses específicos, em detrimento daqueles de seus representados. E além disso, elas podem agregar uma visão distorcida que não identifica a necessidade de também reconhecer justos interesses de outros públicos que integram a economia.
6) Comunidades, por fim, aproximam, de forma menos estruturada, pessoas com interesses comuns, a exemplo das comunidades físicas, científicas e daquelas virtuais da internet. É preciso reconhecer, todavia, que as comunidades podem ser frágeis, movidas por afinidades dispersas e sem contribuir de maneira efetiva para que sejam criados ou aprimorados produtos e serviços ou regras legais.
Nossas considerações acima se baseiam no artigo Coordination of economic actors and social systems of production, dos professores J. Rogers Hollingsworth e Robert Boyer, integrante do livro Contemporary capitalism – the embeddeness of institutions, com textos produzidos sobre vários pensadores. A quem se interessar, recomendamos a leitura desse e de outros artigos do livro em questão.
A operação das estruturas anteriores impacta em profundidade o desenvolvimento dos países, conforme demonstrou o professor Douglass North, laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 1993. Em seus estudos, o ilustre pesquisador buscou explicar porque alguns países são mais desenvolvidos do que outros, e apontou, como principais causas dessa constatação, as “regras do jogo” e seu cumprimento (enforcement).
A quais “regras do jogo” Douglas North se referiu? Às regras constitucionais e legais, ou seja, às regras formais, e também às regras informais que as várias sociedades ao redor do Planeta criam para delimitar comportamentos, as quais modelam as variadas culturas. Enfatizamos a tremenda importância do Estado quanto às regras formais e em seu enforcement, lembrando que o próprio Estado está – e precisa estar! – submetido a regras em sua atuação. Aos interessados, recomendamos o livro Institutions, institutional change and economic performance – political economy of institutions and decisions, umas das obras mais importante de Douglas North.
Focada na grande lacuna entre países mais e menos desenvolvidos, a resposta de Douglas North talvez possa ser aplicada a um dos maiores problemas (resultados indesejados) das economias capitalistas de vários países: a forte desigualdade social. A desigualdade acachapante não apenas entre países, mas entre as pessoas e grupos sociais dentro de um país, além de colidir com o conceito de civilização, termina por se tornar ameaça preocupante à economia e à sociedade, de forma mais ampla. E pensando em nossa realidade nacional, como discordar de que o Brasil é um dos países mais desiguais do Planeta? De que que o nosso sistema tributário é profundamente injusto? De que a forte desigualdade prejudica a economia? De que ela destrói oportunidades de milhões de seres humanos?
Independentemente da visão ideológica sobre as causas e as alternativas para tratar o problema da desigualdade, as “regras do jogo” formais e seu enforcement são ferramentas básicas para reduzir – ou aprofundar – a desigualdade. Em que medida as regras do jogo e seu enforcement privilegiam grupos específicos, em detrimento da maioria dos cidadãos? Neste ponto, cabe fazer uma reflexão sobre a fala do ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, em entrevista por ele concedida à BBC News Brasil (3/2/2020), da qual extraímos e resumimos a seguir alguns pontos que nos parecem fundamentais para fins deste artigo:
1) Desigualdade – o sistema econômico nacional extrapola qualquer razoabilidade: o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A desigualdade é ampla. Abrange, além de renda e oportunidade, desigualdade de gênero, raça, homofobia. Um conjunto de temas necessita ser tratado para que as pessoas vivam em um país melhor. Falta uma grande estratégia que aborde todas essas questões, ligadas à desigualdade.
2) Desigualdade e a economia – muito do que poderia ajudar a combater a desigualdade também ajudaria no crescimento da economia. A desigualdade trava a economia nacional. A forte desigualdade cria território fértil para o populismo e aventuras. É uma “desfaçatez completa” uma pessoa ter rendimentos de R$ 400 mil por mês e pagar apenas 5% de imposto de renda. É necessário acabar com tais “aberrações”.
3) Oportunidades associadas ao combate da desigualdade – é preciso haver confiança e muito investimento de qualidade em áreas sociais, ao longo de muitos anos. É preciso investir em educação, saúde, questões urbanas, favelas e nos transportes públicos (pessoas gastam horas atualmente para chegarem aos seus trabalhos). Há um “oceano” de oportunidades de investimentos, privados e estatais. O estado não precisa ser mínimo; ao mesmo tempo, quando 500 mil pessoas esperam na fila pelo Bolsa Família, percebe-se “certa falência” do Estado atual.
4) Frentes de atuação contra a desigualdade – é preciso atuar em três frentes: tributária (eliminando-se subsídios e desonerações indevidos), previdenciária (promovendo-se mudanças na Previdência Social) e administração pública (a ser baseada em investimentos de qualidade, gastos razoáveis com o funcionalismo e meritocracia).
Questionado pelos entrevistadores quanto à percepção de que o tema desigualdade é mais associado a uma agenda “de esquerda”, Armínio Fraga observou que seus estudos o colocam “mais à esquerda do que a esquerda”. Muito mais disse Armínio Fraga sobre economia e desigualdade, mas refletindo sobre os tópicos anteriores, especialmente o item 4, depreendemos que a forte desigualdade está relacionada a regras do jogo formais, as quais determinam o nível de justiça e razoabilidade (ou não) presentes nos sistemas tributário, previdenciário, nas operações do Estado e em outros temas ligados à desigualdade. Essas regras e seu enforcement são determinados pelo Estado.
Dado esse pano de fundo, retornemos à pergunta do título deste artigo: as empresas, por intermédio de seus sócios e administradores, também têm algo a fazer em relação à desigualdade? As “regras do jogo” empresariais e seu enforcement têm um papel a cumprir? Não temos dúvidas de que sim. Isto está fortemente expresso nos princípios éticos empresariais e nas boas práticas de governança corporativa e de sustentabilidade.
Quando o sistema de governo de uma empresa, por meio de suas regras, não discrimina pessoas por gênero, raça, religião, preferência sexual e outros tópicos, está contribuindo poderosamente para bloquear o crescimento da desigualdade – lembrando aqui a concepção expandida de desigualdade defendida por Armínio Fraga. Um segundo exemplo está ligado ao modelo de gestão e às regras do sistema de recompensas. Os critérios de distribuição de resultados às pessoas, especialmente em períodos anuais de grande sucesso financeiro, constituem-se em outra forma poderosa de reduzir a desigualdade.
No caso dos sócios, especificamente, destaca-se: aqueles com poder para determinar a qualidade do modelo de gestão pretendido, ou seja, os insiders, podem criar bons princípios éticos e boas regras do jogo internas. Quanto àqueles que acompanham a empresa e seus resultados, como outsiders, estes podem cobrar ética e boas práticas de governança e sustentabilidade. Todos ganharão: sócios de todos os tamanhos, demais stakeholders e a sociedade.
Por fim, a redução da desigualdade pode passar pela estratégia da empresa. O livro “A riqueza na base da pirâmide” (The fortune at the bottom of the pyramid: erradicating poverty through profits), do professor Coimbature Krishnao Prahalad (muito conhecido entre os estudiosos de estratégia como C. K. Prahalad) propõe que os pobres também sejam vistos como empreendedores e consumidores. Eles representam um gigantesco mercado, ainda não atendido ou subatendido pelas empresas, as quais têm falhado em ajustar seus modelos de negócios para estimados quatro bilhões de pessoas. De acordo com o professor Prahalad, inserir pessoas pobres no consumo requer grandes inovações na concepção de produtos, do marketing e da distribuição, mas pode valer a pena para as empresas, produzindo bons retornos econômicos.
CIDA HESS: Economista e contadora,especialista em finanças e estratégia. Mestre em Contábeis pela PUC/SP, doutoranda pela UNIP/SP. Atua como executiva e consultora de organizações.[email protected]
MÔNICA BRANDÃO: Engenheira, especialista em finanças. Mestre em Administração pela PUC/MINAS. Atua como executiva, conselheira de organizações e professora
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