Durante algum tempo, mais precisamente na segunda metade dos anos 1980 e na primeira da década de 1990, eu escrevia uma newsletter mensal, na qual falava dos mercados nacional e internacional. Era o Relatório FNJ, nome da distribuidora de valores na qual eu trabalhava.
Entre meus leitores, havia dois governadores: Mário Covas, de São Paulo, e Fernando Collor de Mello, de Alagoas.
Eu já mencionava dados da economia americana que hoje são corriqueiros entre analistas e operadores, mas naquela época quase ninguém conhecia. Entre eles: US nonfarm payroll, PPI, CPI, Retail Sales, Durable Good Orders, Capacity Utilization, etc.
Mas deixem-me pinçar, meio que ao acaso, alguns trechos dessas cartas mensais, para que os leitores mais jovens, ou até mesmo de meia idade, possam avaliar como eram os mercados, principalmente os brasileiros.
No dia 1º de janeiro de 1990, dois meses e meio antes da posse de Collor na presidência (que naquela época acontecia em 15 de março) comentei:
“A dívida externa brasileira é em grande parte responsável pelo atual estágio de hiperinflação. Ao emprestarem dinheiro para o Brasil, os bancos estrangeiros não se municiaram de garantias suficientes, mesmo porque elas não existiam, para o ressarcimento dos empréstimos, da mesma maneira que ingleses e franceses não fizeram no Tratado de Versailles em 1918.”
Em dezembro de 1989, numa época em que todos os olhares do mundo estavam fixados no Leste Europeu, expliquei:
”O fato mais importante no mês de novembro foi o que está sendo interpretado por muitos analistas políticos como o início do fim do comunismo. No dia 7 de novembro, renunciou todo o governo da Alemanha Oriental. No dia 9, a mesma República Democrática Alemã abriu suas fronteiras. No dia 10, caiu todo o governo da Bulgária. No dia 23, começaram as grandes manifestações de protesto contra o regime na Tchecoslováquia. No dia 24, o líder do partido comunista e do Politburo tcheco pediu demissão. Tudo isso, além dos fatos conhecidos anteriormente, como a tomada do poder pelo movimento Solidariedade, na Polônia, e da abertura democrática na Hungria, tiveram não só a aprovação como, e principalmente, o incentivo do secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev.”
Naquela época hiperinflacionária, os mercados brasileiros já iniciavam o mês perdendo. Tinham primeiro de igualar o IPCA para depois registrar seus primeiros ganhos. Em outubro de 1989, por exemplo, quando a inflação (mensal, bem entendido) foi de 37,62%, todos conseguiram.
Houve ocasiões nas quais, mesmo com um quadro inflacionário aterrorizante, a Bolsa conseguia por larga margem superar a alta de preços.
Foi o que aconteceu em julho de 1989, quando o Ibovespa mais do que dobrou o IPC. Este ficou em 28,77% (ao mês, não custa repetir) enquanto as ações subiram em média 69,50%.
Hoje em dia, refletindo sobre aquela época, penso que nós, investidores e especuladores, preferíamos ser sócios de uma empresa sólida do que confiar na moeda brasileira, que corria o risco de uma moratória ou confisco, sendo que este último acabou acontecendo.
Um parágrafo de meu relatório de 31 de março de 1989 valeria para os dias de hoje, mesmo decorridos mais de três décadas.
“É bom frisar que nossa Constituição tem um arcabouço parlamentarista para um regime presidencialista, ou seja, o próximo presidente não vai conseguir implantar as mudanças na estrutura socioeconômica do país, mudanças essas necessárias para o término do processo inflacionário.”
Outro parágrafo que serviria como uma luva para o momento atual, foi escrito por mim no início de 1989:
“Com relação à inflação americana, dois números preocupantes foram divulgados agora em fevereiro. O Índice de Preços dos Produtores (PPI) do mês de janeiro, divulgado no dia 10.02.1989, foi de 1% e o Índice de Preços aos Consumidores (CPI), divulgado no dia 22, foi de 0,6%. Tais índices deram ao mercado a desconfiança de que, embora altas em termos absolutos, as atuais taxas de juros dos Estados Unidos podem não ser tão atraentes assim.”
Na Resenha FNJ, volta e meia eu narrava histórias pitorescas, como O caso das tulipas, escrito e publicado em julho de 1988.
“Em 1600, algumas tulipas foram trazidas de Viena para a Inglaterra. Algumas mudas atravessaram a Mancha e foram para a Holanda. Entre 1600 e 1634, tanto na Inglaterra como na Holanda, ter tulipas era um símbolo de status. Todo mundo queria tê-las. Aliás, quem não as possuía, tinha mau gosto. Entre 1634 e 1636, a loucura foi tão grande que muita gente abandonou o comércio e a indústria para se meter no negócio de tulipas.
Em 1636, o bull market chegou ao auge. O preço da tulipa passou a ser cotado nas bolsas de Roterdam e Amsterdam. A coroa promulgou decretos que criavam os dealers de tulipas e supervisionavam suas atuações. Uma espécie de tulipa, a viceroy, valia mais do que uma casa ou uma pequena fazenda.
No final de 1636, como não poderia deixar de ser, houve um crash.
O interessante é que esse período de 36 anos foi tão importante que até hoje quando se fala em tulipas pensa-se imediatamente na Holanda. A tulipa é um importante produto de exportação daquele país.”
Acho que foram os relatórios FNJ, e o interesse que eles despertaram nos leitores, que me fizeram, pouco tempo depois, largar o mercado e me tornar escritor em tempo integral.
Um forte abraço,
Ivan Sant’Anna