O mês foi do presidente da República.
Suas falas dominaram os debates econômicos. Perderam-se as nuances e as tecnicalidades referentes às políticas fiscal e monetária, e todos fomos transportados para uma espécie de programa de auditório, ou para uma rede social, sobre esses assuntos.
No dia 17, o presidente da República recebeu os ministros Haddad e Tebet, que trouxeram dados sobre subsídios e renúncias fiscais que teriam deixado o mandatário “extremamente mal impressionado”.
Mas no dia 18 esse foi apenas um dos temas de uma entrevista muito polêmica na qual o presidente retornava com todo vigor a Roberto Campos Neto.
O COPOM terminou sua reunião no dia seguinte, 19, mantendo a taxa SELIC em 10,5% e daí até o câmbio atingir R$ 5,70, em 2 de julho, o presidente Lula não deu descanso ao Banco Central. Nessa ocasião, o presidente disse que sua visão do assunto não era “teórica”, mas de “um presidente que teve o Banco Central sob meu domínio durante 8 anos e com total autonomia”.
Em junho, no Brasil, a realidade se converteu num reality show.
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A reunião do COPOM do mês de junho – a de número 263, finalizada no dia 19 e com ata publicada no dia 25 – trouxe uma decisão unânime para a manutenção da taxa SELIC em 10, 50%. Curiosamente, foi a unanimidade o aspecto mais comentado dessa decisão, posto que, na reunião anterior, a de número 262, houve um placar apertado: 5 a 4 a favor de uma queda de 0,25% contra uma queda de 0,5%, que levaria a SELIC para 10,25%. Assim sendo, os quatro votos para uma SELIC de 10,25% na reunião 262 se converteram em votos para manter a SELIC em 10,50%.
A decisão não foi surpreendente. Era outro momento, mas o suposto pragmatismo do placar foi muito comentado. Na verdade, a unanimidade é bem menos uma “mudança de opinião” do bloco minoritário, uma vez que a conjuntura inegavelmente piorou entre as duas reuniões, do que um reflexo de uma cultura de colegialidade que permeia as decisões do COPOM desde a sua criação. Foi importante o COPOM votar unido, pois é o que se passa quando a instituição está ameaçada.
Vale repetir o que está na lei e consagrado nas práticas da política monetária: como o COPOM se confunde com a diretoria do Banco Central, a qual, por sua vez, é colegiada por força de lei, é natural que suas decisões se orientem pelo consenso e que os placares sejam muito mais frequentemente “sinalizações” do que verdadeiras divergências. Pelo menos era assim desde o início do COPOM em 1996 até a Lei Complementar 179/2021 alterar as regras de nomeações e de mandatos de dirigentes do BCB, conforme atestado por pesquisa[1].
As duas únicas ocorrências de placares de 5 a 4 foram na vigência das regras novas ou, mais especificamente, na presença de uma diretoria apenas em parte nomeada anteriormente ao presidente da República em exercício.
Estaríamos migrando para um sistema de “bancadas”?
A decisão unânime da reunião 263 sugeria que não. Ao menos naquele momento.
A decisão do COPOM provocou irritação do presidente da República, que subiu o tom de suas críticas à política monetária, bem quando se registravam os primeiros movimentos referentes à escolha do sucessor de Roberto Campos Neto. Também não era uma coincidência inesperada, mas, assim mesmo, houve alguma tensão nos mercados financeiros, sobretudo no câmbio. Para muitos, o presidente Lula foi longe demais em suas críticas. Mesmo assim, todavia, o COPOM não se deixou influenciar, como o placar unânime deixou claro.
O presidente da República insistiu em suas falas críticas relativas à política monetária, o que está longe de ser incomum quando se observa outros países, mas deu um pequeno passo para o lado quando começou a mirar na especulação no mercado de câmbio. Falou em “ações concretas” cujo teor não quis revelar, mas é difícil imaginar qualquer medida muito objetiva que não passe pelo Banco Central.
A experiência brasileira com os mandatos descasados criados pela Lei Complementar 179 parece indicar que, quando o presidente da República não pode demitir o presidente do Banco Central, suas críticas à política monetária podem ser feitas de forma pública. Há quase um incentivo para que o faça, na verdade. Existe, sem dúvida, um pequeno paradoxo aqui: quanto mais independente é o banco central mais livres ficam os políticos para criticar abertamente a política monetária.
Na situação anterior, quando o presidente da República podia demitir ad nutum qualquer dirigente do Banco Central, havia muito comedimento quanto às suas manifestações públicas, sendo certo que nenhum mandatário jamais deixou de expressar sua opinião sobre a política monetária para o presidente da Autoridade Monetária, com ou sem a intermediação do ministro da Fazenda.
Entretanto, na situação atual, ordenada pela LC179, as críticas do presidente à política monetária, públicas ou não, são nada mais que palavras ao vento.
Não se perca de vista, entretanto, que as palavras ao vento são a matéria prima da retórica política. O mandatário é um mestre nessa arte, e tudo indica que percebeu a oportunidade de oferecer um “contraponto” ao Banco Central. Se há algum ganho político ou retórico e se são palavras ao vento, qual o problema?
O efeito desse “contraponto”, sempre muito bem recebido entre cercadinhos e apoiadores incondicionais, todavia, é o de enfraquecer a institucionalidade da moeda e enervar os mercados financeiros. É quando se vê que é muito pior que apenas palavras ao vento. O stress nos mercados financeiros faz subir o dólar e faz abrir a chamada curva de juros. Sim, a fala do presidente da República faz subir os juros, a exata variável em que direcionou seus canhões.
Como se sabe, o Banco Central (o COPOM mais especificamente) fixa a SELIC, que é uma taxa de juros para o prazo de um dia. Todas as taxas para os outros prazos dependem dessa coisa chamada “a curva de juros”, que se forma a partir das expectativas de mercado sobre a SELIC no futuro.
Ao desestabilizar a curva de juros, o presidente da República materializou o exato pesadelo que se propôs a combater. Como é possível que não tenha uma assessoria que lhe explique o funcionamento do mercado financeiro?
O fato é que as falas presidenciais trouxeram custos sociais muito claros, e que poderão se tornar ainda maiores se o Banco Central se ver forçado a usar as reservas internacionais para intervenções estabilizadoras no mercado de câmbio.
É muito mais barato para o país que o presidente simplesmente se contenha.
A escolha do novo presidente do Banco Central ganhou muito mais importância: o momento é de incerteza inclusive quanto ao apoio presidencial ao ministro Haddad e suas escolhas fiscais. Diversas vezes, ao longo do mês, falou-se do esgotamento da alternativa de equilibrar as contas públicas pelo lado da receita.
O ministro Haddad propôs e o governo adotou o “arcabouço fiscal” e suas metas e mecânicas. O próprio presidente da República, em outra ocasião, levantou dúvidas sobre essas metas, mas também essas manifestações entraram para o catálogo das palavras ao vento.
Terá havido algum fato novo no tema fiscal nesse conturbado mês de junho?
Na visita ao presidente Lula no dia 18, os ministros Haddad e Tebet mostraram uma lista de renúncias fiscais somando R$ 646 bilhões, calculadas para o exercício de 2023 pelo TCU[2]. Desse valor 127,6 bilhões correspondem a benefícios creditícios, geralmente na forma de juros menores ou equalizações para fundos constitucionais em programas administrados por bancos oficiais, e R$ 519 bilhões dizem respeito a gastos tributários conforme regularmente calculados pela Receita Federal em seu Demonstrativo de Gasto Fiscal (DGT) que sempre acompanha as propostas orçamentárias. Segundo o DGT referente ao PLOA-2024, o total de “gasto tributário” para 2024 foi estimado em R$ 523,7 bilhões[3].
A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (UNAFISCO) expande o conceito de “gasto tributário” para alcançar o que entende como privilégios, e chega ao valor ainda mais impressionante de R$ 789,6 bilhões[4].
Mas não é bem assim. O problema fiscal brasileiro seria fácil de resolver se existissem tantas distorções e privilégios no sistema tributário, e tantos gastos públicos destituídos de mérito, ou desperdícios, como normalmente se supõe.
No assunto específico dos impostos, basta observar a composição do número apresentado a cada ano pelo DGT, no qual o maior de todos os “gastos tributários” (e vamos ter cuidado com essa linguagem) é o Simples Nacional, que a SRF estima que vá custar 125 bilhões em 2024. A estimativa de “gasto tributário” gerada pelo Simples Nacional presume que todas as empresas que aderiram ao sistema continuariam a existir do mesmo jeito caso tivessem que funcionar no sistema “complicado”. O “gasto tributário” seria a diferença entre o que pagariam no “complicado” deduzido o que foi pago no Simples. Claro que é um cálculo irreal, pois, provavelmente, a grande maioria das empresas no Simples Nacional, responsáveis por mais de 11 milhões de empregos em 2019, deixaria de existir se o sistema fosse abolido.
Mais irreal ainda, entretanto, seria incluir na conta, como faz a UNAFISCO, a não-implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas como renúncia ou privilégio.
Presume-se que o presidente da República tenha ouvido explicações e qualificações de seus ministros quando eles exibiram o número de R$ 646 bilhões de “subsídios e renúncias”. O desagrado do mandatário talvez seja exatamente pelo fato de que não existe solução fácil para o problema fiscal brasileiro, e sem esta solução não há mágica para levar o Brasil a juros de Primeiro Mundo.
[1] Ver https://www.riobravo.com.br/voto-divergente-no-copom-uma-nota-2/.
[2] No contexto do relatório do ministro Vital do Rego recomendando a aprovação das contas do governo para o exercício de 2023. Tribunal de Contas da União Contas do Presidente da República 2023, Ministro Relator Vital do Rêgo, Brasília, 2024.
[3] BRASIL. Secretaria da Receita Federal. Demonstrativo dos gastos tributários ― PLOA 2024. Brasília, set. 2023.
[4] UNAFISCO NACIONAL De gastos tributários à concretização dos privilégios tributários: privilegiômetro tributário de 2024. Nota Técnica n. 32/2024.
Por: Gustavo Franco, Senior Advisor da Rio Bravo
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