A entrevista concedida pelo presidente da República – amplamente publicada e repercutida nos últimos dias de outubro, tratando de assuntos fiscais – foi um pequeno desastre para o ministro da Fazenda.

Nada é pior que o “fogo amigo” vindo do Palácio, em “on”: o presidente questionando a política econômica publicamente. O grande “plano de governo” na economia foi o arcabouço e seus números: se isso não é importante, o que sobra?

No passado, nas incontáveis ocasiões nas quais esse enredo se repetiu, o rito foi o mesmo: o ministro vai ao presidente da República, diz que seu cargo está à disposição, pois pertence ao mandatário, e eles combinam alguma encenação de apoio e confiança, a fim de evitar um pedido de demissão.

O registro é que Haddad sentiu o golpe – e se possui sete vidas, ou umas três ou quatro, como se diz da média dos ministros da Fazenda, uma já se foi. Resta ver como vai resistir e seguir adiante. Será preciso acompanhar.

Não é incomum que o chefe do governo se entregue a exageros verbais com vistas a acalmar setores mais radicais do partido, ou de sua coalizão. Sobretudo esse chefe de governo.

Entretanto, Brasília aprendeu a discernir excessos brancos, de pura retórica, daqueles que são declarações sinceras, fora da caixa e da rotina, e que revelam nuances de divergências materiais que a comunicação oficial se empenha em ocultar.

A manifestação de Lula sobre as metas fiscais de Haddad foi comparada ao famoso desabafo de Dilma Rousseff, “gasto é vida”, a fala que serviu como marco definidor da Nova Matriz, de triste memória.

A ex-presidente está convenientemente bem longe, em Shanghai, alojada e exilada na presidência do NDB (New Development Bank), o banco dos BRICS. Mas suas ideias parecem mais vivas do que se poderia imaginar.

Com isso, o ministro Haddad termina o mês de outubro menor do que começou.

Somada às declarações sobre o Oriente Médio, as falas do presidente parecem destinadas a solapar a reputação de encantador de serpentes que Lula cultivou ao longo de sua carreira. Tudo é mais difícil nessa sua terceira presidência, na economia como em Brasília, e a reedição de velhos programas, bem como de velhas receitas para o entrosamento com o Legislativo, e mesmo das falas intuitivas e improvisos do mandatário, não têm produzido bons resultados.

O mês de outubro trouxe mais que uma fala inadequada do presidente. O encontro anual do FMI e Banco Mundial no Marrocos, um bom termômetro para as aflições econômicas globais, teria sido monótono, não fosse uma grande sombra pairando sobre todos: o conflito no Oriente Médio. Mesmo que as consequências do conflito no terreno financeiro, ou sobre o preço do petróleo, ainda sejam indefinidas, como o próprio desenrolar e o alcance do conflito, o assunto possui gigantesco potencial desestabilizador.

No terreno legislativo, outubro teve ao menos dois destaques, ambos tributários: a reforma (constitucional) nos impostos sobre o consumo (a dita “reforma tributária”) tramitando no Senado, e os avanços na Câmara do PL sobre impostos sobre fundos fechados e recursos offshore.

Os andamentos da reforma tributária no Senado não surpreenderam. O relatório do senador Eduardo Braga (de 25/10, apresentado na Comissão de Constituição e Justiça) chamou a atenção pela ampliação supostamente irrazoável de exceções e do período de transição.

O relatório produziu críticas contundentes, como a de Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda de São Paulo e ex-diretor executivo do IFI (Instituição Fiscal Independente). Para Salto, o texto ficou tão complexo que talvez não valha mais a pena fazer (“Melhor não parir o mostrengo tributário”, O Estado de S. Paulo, 26/10/2023).

A reforma dos impostos de consumo já tinha fracassado várias vezes no passado, desde quando foi primeiro aventada nos anos 1990. A arquitetura melhorou, mas as dificuldades continuam grandes.

O ministro e o governo talvez tenham se iludido que o assunto estava maduro, e assim subestimado os recursos políticos necessários para uma tramitação tranquila. A pauta do ambiente de negócios, que sempre foi a razão de ser dessa e de outras reformas, não é bem a cara desse governo. O problema será o de evitar o desgaste, afastando-se do tema, o que parece impensável na presença do ministro Haddad.

Também no terreno tributário, e mais diretamente na direção de se obter mais recursos para fechar as contas no contexto do arcabouço, veio a aprovação, na Câmara, do Projeto de Lei (PL 4.173), que trata da tributação de offshores, de investimentos no exterior e de fundos de investimentos fechados.

Não há tanto dinheiro em jogo, mas o ministro transformou o assunto numa campanha contra os ditos “super ricos”, e com isso o assunto ganhou importância como um tema de marketing político em desproporção com as receitas que de fato produziria.

O projeto provocou, portanto, sobressalto e desconfiança, sem falar em que pode “sair pela culatra”, por exemplo, se motivar a judicialização da temas aparentemente pacificados, como o “come-cotas”. Conforme lembrado por Marcos Lisboa e Vanessa Canado, o expediente serve para tributar ganhos que ainda não aconteceram, e podem não acontecer[1].

A Receita se ressente do uso que os contribuintes fazem das regras de “diferimento”, mas o fato é que o fato gerador (a renda) precisa ocorrer, tanto em fundos fechados quanto em offshores. Sem fato gerador não há imposto. Na verdade, sem ganhos já realizados, o que se tem é uma tributação sobre o patrimônio, não exatamente a prevista. E se alguém suscitar a constitucionalidade do “come-cotas”, que parece pacificado na sua incidência sobre fundos de investimento já durante alguns anos?

O fato é que o governo, e mais especificamente o ministro Haddad, politizou o assunto ao definir o PL como a “taxação dos super ricos”, assunto do qual ninguém de bom senso ousaria se opor. Mais ou menos como se fala sobre o imposto sobre grandes fortunas, que nenhum governo teve a coragem ou enxergou méritos objetivos para implementar. Tampouco este.

Por que o ministro não propõe taxar as grandes fortunas – que é, na prática, o que diz estar fazendo – em vez de mexer nas regras de investimento no mercado financeiro que geram muita espuma e pouca receita? Se é para tributar os super ricos pelo que de fato são, segundo algum critério objetivo que seria preciso definir, por que não o fazer de forma direta?

A inflação está bem-comportada, ao menos por ora, com as expectativas sugerindo que o governo vai mirar (ou deixar-se limitar a) o teto do intervalo de tolerância, tal como se observou na época de Alexandre Tombini.

Para 2023, que já está em grande medida “resolvido”, a meta é 3,25%, e o teto de tolerância é 4,75% (3,25% + 1,50%) e mediana das expectativas (FOCUS de 30/10) para o IPCA está em 4,63% com leve oscilação para baixo. Para 2024, todavia, meta e teto são de 3,0% e 4,5%, mas a mediana das expectativas está em 3,90% com tendência de alta.

Não se espera que o COPOM altere a trajetória de queda de juros já sobre a mesa – com queda de 0,5% – nem o problema que vai haver em meados de 2024 quando começar o debate sobre a “taxa neutra” e também sobre o substituto para Roberto Campos Neto.

Dois nomes foram anunciados para substituir os dirigentes do Banco Central cujo mandato se encerra no final do ano: Paulo Picchetti, para substituir Fernanda Guardado, nos Assuntos Internacionais; e Rodrigo Teixeira, para substituir Marcelo Moura na Diretoria de Cidadania. Picchetti é professor da FGV-SP e Teixeira é funcionário de carreira.  

É um enorme progresso que o inflacionismo esteja mitigado e que se limite a usar “todo o espaço” que lhe permite o sistema de metas sem subvertê-lo. Não é o ideal, mas é a zaga aguentando a pressão do adversário, sem ceder espaço.

As instituições funcionam, ao menos na defesa da moeda.

Um outro bom exemplo vindo de Brasília, e especificamente do STF, é a decisão que reafirmou a constitucionalidade da (retomada de imóvel no regime de) alienação fiduciária. A Lei 9.547, de 1997, criou o SFI (Sistema Financeiro Imobiliário) e assim deu efetividade a conceitos, entre outros, como o patrimônio de afetação, a segregação fiduciária de um empreendimento, bases para os CRIs (Certificados de Recebíveis Imobiliários).

Essa é uma lei que demorou a “pegar”, pois era preciso que os tribunais “reconhecessem” seus dispositivos, o que levou muitos anos. Ainda não temos um mercado de “mortgages” como nos EUA, mas o crédito imobiliário livre vai crescendo, bem como as securitizações e estruturas financeiras que apoiam o desenvolvimento imobiliário.

Foram duas décadas até o assunto chegar ao STF, já muito pacificado, mas nem por isso deixou de haver votos contrários, ou seja, pela inconstitucionalidade de retomada de imóvel dado em alienação fiduciária (ministros Edson Fachin e Carmen Lúcia). Surpreende, também, é que o noticiário sobre a decisão tenha sido tão “torto”, enfatizando o poder dos bancos para retirar a moradia das pessoas.  


[1] “O erro do ‘come cotas’” Brazil Journal de 25/10/2023.

Gustavo Franco – Senior Advisor da Rio Bravo

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