Por Anatricia Borges, de Plurale (*)
Na comunicação, sempre achei linguística uma disciplina fascinante e necessária. E, sem querer ser teórica, os conceitos de signo linguístico, de Ferdinand de Saussure, e de signo ideológico, de Mikhail Bakhtin, nunca ganharam tanto sentido quanto nesses novos tempos, que muitos de nós ressignificaram como “novo normal”.
Inegavelmente, estamos num mundo em transição. Nos deparamos com uma pandemia global, tivemos que nos adaptar a uma nova realidade e, sob o risco de vida que ameaça o futuro de nossa existência e o sinal de alerta para outros que passamos a imaginar, o processo de revisão de valores e mudanças comportamentais nos leva ao retórico paradigma humano: qual é nosso propósito e sentido no mundo? Convido aqui a pensarmos mais uma questão vital a essa reflexão: como comunicamos responsavelmente esse propósito?
Os impactos desse novo tempo são um desafio para todos nós, especialmente às ciências médicas e humanas. Há estudos importantes em curso, que certamente nos orientarão a um entendimento mais racional e científico das mudanças que estão provocando em nosso modo de vida e em como repensá-lo. A história se encarregará de contá-los. Mas, na comunicação, temos uma responsabilidade imediata: seus efeitos na língua viva (aquela que está em constante transformação) são em tempo real (real time), na forma em que somos impactados pelos fatos, os interpretamos, difundimos nossas mensagens e influenciamos pessoas.
Em tempos de plataformas e redes sociais, de competitividade entre quem melhor rankeia no engajamento de conteúdos e onde todos somos storytellers (contadores de histórias), essas novas expressões, representações e terminologias surgem natural e massivamente nas mensagens de indivíduos e organizações, com a ressignificação de signos e sua associação a novos significantes na busca de conexão, identidade, interação e reputação entre personas. Vale pensarmos que, na corrida do relógio de quem tenta marcar a hora à frente, muitos estão sendo ressignificados de forma distorcida e acelerada, esvaziando a força da narrativa de uma causa ou propósito, como já vimos em outros momentos da comunicação.
Sabemos que o tempo (timing) em comunicação implica numa resposta ágil a um contexto atual, mas lembremos que ele nunca irá deixar de marcar um posicionamento autoral – capaz de formar opiniões, gerar diálogo e interação – sempre respaldado por uma história real que sustente essa narrativa. Não à toa, vemos recorrentemente tantas, esteticamente boas e caras campanhas – planejadas pelas áreas de comunicação, marketing e publicidade das organizações – em temáticas de diversidade, ética, meio ambiente, equidade de gêneros, diversidade e LGBTQI+ serem questionadas, alimentando a polarização crítica, basicamente por não terem reconhecidas a autenticidade e autoridade necessárias de quem fala.
Essa língua viva integra grande parte de nossa responsabilidade e trabalho como jornalistas, assessores de imprensa, consultores, storytellers (contadores de histórias), no papel de orientar as organizações a entender seu lugar de fala e no da imprensa em buscar fontes que estejam nesse lugar de fala, seja no conteúdo de marca (branded content) ou numa cobertura jornalística. Cito aqui a definição da filósofa Djamila Ribeiro sobre o que representa esse lugar de fala: “O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas”. Nesse lugar que nós comunicadores ocupamos socialmente torna-se imensa a responsabilidade de contribuir na elaboração de narrativas que associem signos aos significantes que realmente tenham autenticidade e possamos usar ao contar nossas histórias, para que causas e propósitos não percam a força de suas mensagens, sua capacidade de mobilização e se esvaziem no curso da história.
Neste final do inóspito ano de 2020, usemos, como exemplo, um imaginário estudo de word clouds (nuvem de palavras) nas postagens da rede profissional Linkedin dos últimos sete meses – a plataforma ainda não disponibiliza dados sobre os principais conteúdos publicados em um determinado espaço de tempo. A sigla ESG (Environmental, Social e Governance), sem dúvida alguma, lideraria o ranking das palavras mais utilizadas nas postagens de indivíduos e empresas, mas em centenas de conteúdos é ressignificada semioticamente de maneira errada como uma evolução da sustentabilidade. ESG não é algo novo, surgiu pela primeira vez num relatório da Organizações das Nações Unidas (ONU), intitulado “Who Cares Wins – Ganha quem se importa”-, de 2005, formulado por 20 instituições financeiras, de nove países, entre eles o Brasil. Evoluiu como uma das bases de pensamento que influenciou grupos de trabalho na formulação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e os desafios da Agenda 2030, lançados em 2015 pela ONU. Reduzi-la a “evolução da sustentabilidade”, portanto é um erro de ressignificação.
Estamos num mundo em transição, cada vez mais polarizado, onde as mensagens que emitimos ganham eco com textos que se costuram a hipertextos, embasam notícias falsas, alimentando reinterpretações nem sempre fiéis ao signo e seus possíveis significantes. Esse processo da comunicação tende a gerar mais ruídos e esvaziar o discurso e mensagens. Diante de toda essa disrupção, precisamos olhar o tempo da comunicação em sincronia com os signos e significantes, aqueles fiéis que, de fato, podemos representar. Também é muito bom reconhecer que, nesses últimos oito meses, houve um positivo boom na cobertura da mídia e na gestão da comunicação, com o uso da ESG associada a significantes importantes de preservação ao meio ambiente, da redução das desigualdades, de mais ética, mais diversidade, mais equidade de gêneros, mais empatia, que refletem e provocam mudanças, ampliando e fortalecendo essas mensagens. Há organizações que já possuem um histórico de evolução consciente das práticas, e há outras que passaram a reproduzi-lo somente pela necessidade de entrar na conversação. Ambas atitudes são válidas, como dizia um professor meu, despertam e fortalecem a mensagem.
Me formei há mais de 20 anos, e penso que a gente não se dá conta de quanto da teoria da comunicação que aprendemos na faculdade de Comunicação Social, aplicamos inconscientemente em nosso dia a dia. O legado que podemos construir é esse da herança da língua viva, que Sausurre aponta como produto transmitido de gerações anteriores, de fatores históricos que explicam o signo como algo imutável, e o de Bakhtin, que é ideológico, pois tem um significado que remete a um fenômeno da natureza ou da consciência social. O mundo já é outro, estamos em transição, o capitalismo está em xeque e, mesmo com a pandemia, ele estava longe de ser visto como normal.
(*) Anatricia Borges é jornalista, mãe dos gêmeos Gabriel e Sofia, e, nas horas vagas, Diretora de Storytelling da Dostô Multimídia.