(*) Cristiano Luzes

Vivemos um novo tempo para lidar com um velho problema. A reforma tributária voltou para o centro da agenda política – embora o tema nunca tenha saído verdadeiramente da lista de prioridades nacionais, agora encontra apoio renovado no atual governo, que tem necessidade de mostrar realizações no campo econômico. Mas por que reforma tributária? Ou melhor, qual reforma tributária? Saber o que queremos com a reforma é o primeiro passo para chegarmos a um bom lugar.

Há duas grandes questões implicadas quando falamos em reforma tributária, e todas as outras são delas apenas uma decorrência, quais sejam: eficiência e justiça. Pelo viés da eficiência, é relativamente consensual dizer que um modelo de tributação será bom quanto menos influir nas decisões dos agentes econômicos, de modo a gerar distorções e custos desnecessários na cadeia de produção ou disparidades no equilíbrio da concorrência – a tributação haverá de ser neutra, como se diz, no sentido de que uma mesma regra ser aplica para todos os casos semelhantes e para todos os agentes em posição equivalente, de modo que não se torne um fator significativo para tomada de decisão.

Já pelo viés da justiça, uma tributação boa será aquela que estabeleça certa igualdade de tratamento entre os contribuintes em condições equivalentes, mas também, e sobretudo, que promova algum nível de redistribuição de renda, a fim de que políticas públicas possam ser viabilizadas com a renda dos mais ricos em favor dos mais pobres. Assim, devemos perseguir uma tributação que torne a economia brasileira mais eficiente e competitiva, ao mesmo tempo em que seja equitativa; capaz de produzir receitas públicas sem onerar desproporcionalmente a população mais pobre, que já se encontra em difíceis condições.

Esses dois objetivos passam por diferentes caminhos. A PEC 45, que tramita na Câmara dos Deputados, e a PEC 110, hoje no Senado, são ambas propostas para a reforma da tributação do consumo, com uma vocação natural para lidar com o problema da eficiência da cadeia produtiva – sua pauta principal é a eficiência econômica. Ao lado disso, já foi aprovado na Câmara o PL 2335/2021, que trata da reforma da tributação da renda e tem como foco um modelo mais justo e progressivo de tributação – entre suas principais propostas está o fim da isenção sobre lucros e dividendos e da dedução dos juros sobre capital próprio, além da correção da tabela do IR na pessoa física.

 A reforma da tributação do consumo, sobretudo pelo excelente trabalho de economistas, juristas e pesquisadores ligados ao CCiF e à FGV-SP, possui hoje uma lista clara de prioridades:

 i) Unificar a tributação do consumo, numa gestão compartilhada entre os diferentes entes federativos, de modo a eliminar a disputa jurídica sobre a base de incidência específica de cada tributo e a erosão das bases tributáveis, isto é, que operações não deixem de ser tributadas apenas por não se enquadrarem numa hipótese legal delimitada – com efeito, grande parte do contencioso tributário diz respeito a uma disputa vazia em torno dos conceitos de produto (ICMS) e serviço (ISS), que poderia ser facilmente resolvida por um tributo de base ampla sobre todas as operações comerciais envolvendo bens e serviços, inclusive bens intangíveis.

ii) Modificação do critério da tributação do estado produtor para o estado consumidor: outro grande problema do modelo atual de tributação no Brasil, sem paralelo nos melhores sistemas do mundo, é a incidência do ICMS no estado produtor e não no estado consumidor, o que tem feito com que os estados disputem entre si a desoneração tributária mais ampla para incentivar a instalação de fábricas e distribuidores em seus territórios (guerra fiscal); a tributação no estado de produção ainda promove o empobrecimento dos estados consumidores, com deslocamento não só de renda mas também de receita pública.

iii) Redução do número de regimes especiais e de faixas de alíquota – mostrou-se um grande fracasso a tentativa de se criar um modelo redistributivo no ICMS, com diferenças de alíquotas entre produtos essenciais e supérfluos, além de produzir contexto para o contencioso em torno da classificação de produtos.

iv) Eliminação dos incentivos fiscais setoriais – embora seja bem aceita por agentes privados e pela opinião pública, a concessão de incentivos fiscais implica redução de receita que precisará ser necessariamente compensada com maior tributação geral de todos os contribuintes, criando distorções na dinâmica de preços, além de onerar os setores menos capazes de influir na legislação tributária dos estados.

v) Equalização da tributação entre produtos e serviços – hoje a tributação é muito menor para o setor de serviços, com graves implicações em termos de distribuição de renda, pois a população mais rica é naturalmente maior consumidora de serviços e contribui com menos tributos nesse consumo; o problema hoje é agravado pela mudança da matriz produtiva, com o gradativo crescimento do setor de serviços.

Mas se a reforma do consumo parece ter encontrado seu contorno final, a reforma da tributação da renda possui hoje menor consenso, o que contrasta com a facilidade com que essa reforma poderia ser operada no Congresso. Essa falta de consenso se explica pela dificuldade inerente em se reestabelecer um novo pacto redistributivo da renda, com todos os riscos e resistências setoriais que isso implica.

Não será tarefa fácil encontrar um novo modelo da tributação da renda que possa por fim ao bem assentado modelo da tributação exclusiva na pessoa jurídica, com isenção sobre os lucros e dividendos distribuídos. Há quem diga, não sem razão, que a desoneração dos lucros é ainda necessária para o desenvolvimento econômico do Brasil, na medida em que influi na atração de investimentos e viabiliza maior mobilidade na alocação do capital distribuído aos acionistas das companhias. O mesmo poderia ser dito em favor da dedução dos juros sobre capital próprio.

Precisaremos, contudo, ter clareza da distorção do sistema. A tributação da folha pode chegar ao montante de 40%, com as altas alíquotas do imposto de renda da pessoa física e a contribuição previdenciária; some-se a isso a contribuição patronal e outros encargos, vemos como as pessoas físicas hoje são detentoras das mais altas cargas tributárias do País. De outro lado, uma empresa do setor de serviços, com as margens de lucro em média superiores em relação à indústria e ao comércio, sofrerá a incidência do IRPJ-lucro presumido e ISS, numa carga efetiva inferior a 20%, sem tributação na distribuição dos lucros. Na prática, os mais pobres arcam com a maior conta, a geração de empregos fica mais cara e a economia do consumo mais estática.

Enfim, com clareza sobre os objetivos a perseguir e os problemas a resolver, a escolha dos caminhos possíveis fica um pouco mais fácil. O Brasil tem sede e fome de progresso, econômico e social. Que seja, de fato, como parece ser, o tempo certo para resolvemos um velho problema.

(*) Cristiano Luzes é doutor pela PUC/SP e sócio do Serur Advogados.

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