Não sabemos se a abordagem disruptiva do candidato anti-establishment oferece um caminho sustentável ou corre o risco de exacerbar as divisões existentes
Magno Karl
Na Argentina, um economista liberal radical, conhecido pelas suas aparições estridentes na televisão argentina, passou a ser, recentemente, o principal candidato à presidência do país. Desgrenhado, agitado e acusador, Javier Milei tornou-se um símbolo da rejeição popular à “casta”, como se refere rotineiramente ao establishment político que transformou um país anteriormente rico numa piada continental.
Nos corredores labirínticos da política argentina, onde os fantasmas do peronismo e os espectros da instabilidade econômica sem fim assombram cada esquina, surgiu uma figura controversa, popular e populista, mas que, aos olhos de alguns, pode ser promissora.
Milei não é um produto da cruzada de justiça social da esquerda, nem do ethos moralista e conservador da direita. Ele é um político atípico que desafia categorizações fáceis. Suas visões são em grande parte liberais, em defesa das liberdades política, econômica e civil. Mesmo assim, Javier Milei não rejeitou, por exemplo, o apoio de Bolsonaro. Pelo contrário: o candidato argentino diz ter “afinidade natural” com o ex-presidente brasileiro.
Milei se define como um “minarquista” ou como um “anarco capitalista”. Em linhas gerais, em sua visão de mundo, o tamanho do estado deveria variar entre pequeno e inexistente. Em seu programa de governo, ele promete reduzir os ministérios argentinos a apenas oito, mas assegura que não demitirá qualquer funcionário público de carreira –os cortes de pessoal no estado seriam focados nos cargos de indicação política e na privatização de estatais. Os impostos seriam reduzidos depois de um drástico corte de gastos.
Milei promete ainda a modernização da legislação trabalhista, corte de subsídios, abertura comercial unilateral, e a manutenção de programas de assistência social. Seu programa diz que os que recebem ajuda do Estado são “vítimas do sistema”, que os políticos são seus algozes, e que eliminar de uma vez o suporte que recebem mensalmente seria um crime. Na visão de Milei, o Estado permaneceria presente na saúde, financiando diretamente a demanda (os usuários do sistema) e não a oferta (a estrutura do sistema), e na educação, oferecendo mais liberdade de escolha dos pais, com vouchers e incentivos para melhores desempenhos. Um programa liberal, mas não muito radical.
No Brasil, o surgimento do argentino no noticiário expôs a incapacidade de nos debruçarmos com atenção sobre um corpo de propostas fora do arroz-com-feijão nacional. A simplificação nos sonega a complexidade do personagem político de Milei à direita, como nos sonegou à esquerda uma visão sobre a complexidade de Gabriel Boric, o jovem presidente chileno que, apesar de militar na esquerda, se difere de seus pares, inclusive o brasileiro, em suas visões sobre o autoritarismo de governos de seu campo no continente.
Para seus detratores, Milei é um populista radical de direita, que acabará com o Banco Central, dolarizará a economia, e colocará em perigo as poucas instituições do país que permanecem de pé após anos de declínio económico. Para seus partidários, Milei não derrubará nada que já não esteja no chão: para estes, pouco sobram da credibilidade da moeda nacional, recentemente desvalorizada em mais de 20% em um único dia, das receitas de política econômica e monetária, e da moral dos políticos do país.
É certo que a candidatura de Milei carrega riscos inerentes. A política argentina pode não estar preparada para o embate entre o presidente outsider e a “casta”, que mesmo comandando o empobrecimento do país das últimas décadas, deverá permanecer com força política relevante no parlamento, liderando a oposição à direita e à esquerda. Além disso, um presidente de fácil comunicação com as massas, com retórica explosiva e em conflito com a classe política, num país em absoluta crise econômica e inquietação social, poderia ser receita para mais instabilidade.
Além disso, as suas ameaças de ruptura de relações comerciais com países autoritários, como a China, maior parceiro comercial do país, também podem trazer à Argentina mais insegurança econômica e social. Embora Milei traga nova energia à política argentina, não sabemos se sua abordagem disruptiva oferece um caminho sustentável ou corre o risco de exacerbar as divisões existentes. No economista libertário, a Argentina enfrenta a escolha entre a estabilidade dos responsáveis por sua decadência e o salto no escuro com o performer de respostas aparentemente fáceis para problemas que se abatem sobre o país há décadas.
A cada semana de crise, com desvalorização do peso, dolarização branca e, agora, saques nos supermercados, fica mais compreensível o apelo de Milei junto à educada sociedade platina. Se conhecesse Tiririca, Milei poderia adotar seu apelo de campanha. Se soubessem que pior do que se está não é possível ficar, os argentinos ficariam mais perto de uma aposta em Milei. Com 40% da população abaixo da linha da pobreza, inflação galopante e poder de compra decrescendo a cada dia, há pouco que a política tradicional pode oferecer ao argentino comum em troca de uma aposta no economista descabelado.
Magno Karl é cientista político e diretor-executivo do Livres. Foi pesquisador do Instituto Cato (EUA), cofundador do antigo Instituto Ordem Livre e coordenador político de bancada na Câmara dos Deputados.
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