A frase é de Maite Schneider. Ela é uma das fundadoras do TransEmpregos. A iniciativa agrega o maior banco de talentos de pessoas transsexuais do país.

O Brasil comemorou na sexta-feira, 29 de janeiro, o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data, que passou a ser celebrada em 2004, quando mulheres transexuais, homens trans e travestis foram à Brasília lançar a primeira campanha contra a transfobia, “Travesti e Respeito”, é celebrada para reafirmar a importância da vida, a necessidade urgente de inclusão dessa parcela da população no mercado de trabalho e a garantia de direitos e pelo reconhecimento da sua identidade.

Segundo dados divulgados pelo Trans Murder Monitoring, apenas nos primeiros nove meses de 2020, 124 pessoas transexuais foram mortas no País. Esse número, somado à rejeição da família, baixa escolaridade, vulnerabilização econômica e exclusão do mercado de trabalho, faz com que grande parte desse grupo busque sustento em trabalhos informais.

Levantamentos feitos pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e pelo Projeto Além do Arco-Íris, da AfroReggae, apontam que 90% tem a prostituição como fonte de renda, e que apenas 0,02% estão na universidade. Esses fatores, junto ao preconceito, dificultam o acesso às vagas de emprego.

Por conhecer essa realidade na pele, a empreendedora Maite Schneider decidiu em 2013, junto com a advogada Márcia Rocha, a psicanalista Letícia Lanz e a cartunista Laerte Coutinho, criar a TransEmpregos. A iniciativa, que atua com mais de 600 empresas, é hoje o maior banco de dados de currículos e vagas para pessoas trans do Brasil.

“Nosso trabalho é mostrar que existe um caminho. Que existe uma possibilidade, mesmo que ainda não seja fácil, para que esses profissionais não desistam, e ao mesmo tempo incentivar essas pessoas, capacitar onde não houve capacitação e fazer essa formação de fortalecer esses laços tanto do lado corporativo, da sociedade, como do lado dos profissionais trans. É um trabalho de formiguinha muitas vezes, mas o resultado acaba atingindo um coletivo de maneira muito potente”, diz Maite Schneider.

Em entrevista ao Movimento Mulher 360, a executiva conta sobre a sua trajetória, as barreiras enfrentadas pelas profissionais trans no mercado de trabalho, e de que forma as empresas podem avançar com esse tema. Confira.

MM360 – Quais desafios você encontrou como mulher transgênero na sua trajetória profissional? Como lidou com essas situações?
São várias fases, afinal eu estou com quase 50 anos de idade. Tive a fase inicial de tentativa de suicídio. Foram duas tentativas, uma aos 14, e outra aos 16. Estudei a vida inteira em um colégio religioso, e me chamavam de ‘mariquinha’. Eu achei que era um título. Era uma época sem internet, em que a gente não encontrava as pessoas que passavam as mesmas coisas para entender a situação. Eu não me entendia, e não me entendendo, eu não conseguia explicar.

Teve a entrada na faculdade. Eu acabei trancando o curso de Direito depois de cinco períodos, porque não conseguia estágio na minha área. Foi sempre muito difícil. Acabei optando pelo empreendedorismo, já que o corporativo não me queria. Até me apaixonar pela faculdade que lida com gente, que sou apaixonada até hoje, que é Direção Teatral. Com esse processo, veio a militância. Comecei a militar em 1990, primeiro para me entender, e depois para tentar ser ponte e facilitar o caminho de várias pessoas.

Criei vários projetos e o mais recente é o TransEmpregos, onde eu comecei a trabalhar há quase uma década como consultora de empresas para diversidade e inclusão. Hoje em dia, contribuo para que 688 empresas ampliem seus filtros de recrutamento e seleção a entenderem que competência não tem nada a ver com identidade, orientação, credo, raça, enfim…qualquer uma dessas especificidades. Mas que, ao mesmo tempo, essas especificidades são mega importantes na construção de várias soft skills. Ter um profissional com recortes plurais, variados, e ao mesmo tempo potentes para o universo humano, e o corporativo é um deles.

MM360 – Você foi a primeira trans a fazer parte da lista do LinkedIn Top Voice. Como esse reconhecimento impactou na sua vida e das pessoas que acompanham a sua trajetória?
Eu entrei no LinkedIn há dois anos e me apaixonei pela rede. Não só pelas trocas, mas pelo o que eu aprendo diariamente por lá. Foi uma surpresa entrar nessa segunda lista do LinkedIn Top Voice, até porque os participantes da primeira lista eram pessoas que eu super conhecia e já seguia, acompanhava. Quando saiu a lista com o meu nome, eu falei “Gente, não acredito! Estou no caminho certo”. Fico feliz em ver que na lista de 2020 já entrou a segunda pessoa trans, que é a Gabriela Augusto. Achei incrível que os editores do LinkedIn estão dando visibilidade a pessoas que muitas vezes não têm tantas conexões. Ou seja, perceberam que não bastam só as conexões, e sim os conteúdos que são passados, se são humanos. Eu fiquei muito feliz que vários outros grupos também estão representados. É uma mudança de possibilidades, novos horizontes que se abriram e com eles estou construindo pontes para reduzir as desigualdades que ainda existem.

MM360 – Como surgiu a TransEmpregos? De que forma ela tem contribuído para inserir travestis e transexuais no mercado de trabalho?
Começamos a TransEmpregos porque conhecíamos muitas profissionais trans, às vezes com dois, três pós-doutorados, que não conseguiam emprego por serem trans. Isso me incomodou, porque a conta não fechava. Afinal, se as empresas queriam os melhores talentos, e esses talentos estão disponíveis, só que não são empregados, mostrava que algo estava errado. Em 2013, junto com a advogada Márcia Rocha, a psicanalista Letícia Lanz e a cartunista Laerte Coutinho, criamos esse banco de talentos para garantir emprego e dignidade para cidadãs e cidadãos excluídos do processo de seleção das empresas por terem uma identidade ou orientação diferente da maioria das pessoas. Nosso trabalho inicial era juntar currículos de pessoas trans do Brasil inteiro e apresentá-los nas empresas para possíveis contratações. Não buscamos vagas exclusivas para pessoas trans, mas inclusivas, e que estas pessoas pudessem ser analisadas pelo RH das empresas e que não sofressem preconceitos e discriminações neste processo, só por conta da sua identidade de gênero. Na mesma época, estava sendo criado também o Fórum de Empresas LGBT, que também é um parceiro nosso e deu um passo importante nessa construção.

A gente teve muita sorte de ter bons contatos e ter boas matérias na mídia, principalmente no Estadão – que começou dando as primeiras matérias em páginas importantes de Finanças, Economia. Com isso, empresas começaram a nos procurar e nosso trabalho foi crescendo. Hoje só aumenta. Tanto que, mesmo em época de pandemia, somente no último um mês e meio, 100 empresas entraram para a TransEmpregos e conseguimos empregar 76 pessoas trans em todo o Brasil. Gosto também de dar o exemplo da Atento, que é uma das empresas que a gente trabalha, e que conta com 81 mil funcionários no Brasil. Já ajudamos a colocar 1.300 colaboradores trans. E isso é só uma das 688 empresas.

Por isso, acho que o nosso maior legado é contribuir para que talentos trans sejam reconhecidos, e fazer com que as empresas entendam que elas podem ir além da empregabilidade para fazer processos de culturas organizacionais mais inclusivos. A gente tem conseguido isso também por meio de vários projetos. Temos, por exemplo, uma parceria com o Google, nosso segundo projeto que está no ar agora, que é o TRANS-formAção, para ensinar habilidades subjetivas e digitais, além de conhecimentos jurídicos e de identidade profissional. Tem sido um caminho que as empresas têm entendido, e isso tem mudado esse início das profissionais trans, que normalmente é de muita exclusão e vulnerabilidade.

MM360 – Quais são as principais barreiras que esses profissionais encontram no universo corporativo?
Primeiro é o preconceito, que na maioria das vezes é falta de entendimento, porque pessoas trans, no começo de suas vidas, são jogadas para fora da família, dos colégios e, consequentemente, excluídas do processo de incorporação no meio do trabalho. Acabam sobrando só profissões como a prostituição, que não é o que a pessoa quer como escolha, mas acaba sendo uma delegação como única possibilidade e caminho a ser seguido. Surge então, a barreira do preconceito que existe por causa da ignorância, da falta de conhecimento.

Outra barreira é fazer com que os profissionais trans voltem a acreditar no sistema, que sempre foi de exclusão, de dor e sofrimento, de não aceitação. Mostrar que existe um caminho, que há outra possibilidade. Ainda não é um caminho fácil, ainda são poucas as empresas que estão acolhendo essas pessoas, mas que está acontecendo algo.

Nosso trabalho é para que esses profissionais não desistam, e ao mesmo tempo incentivar essas pessoas, capacitar e fazer essa formação de fortalecer os laços do lado corporativo, da sociedade, e dos profissionais trans. É um trabalho de formiguinha, mas o resultado acaba atingindo um coletivo de maneira muito potente.

Depois de feita a inserção é preciso fazer uma educação para mostrar que a diferença, que a diversidade, é a nossa maior igualdade. Está tudo bem não sermos iguais. A diferença pode ser muito potente para gerar mais criatividade e, consequentemente, trazer mais inovação.

MM360 – Quais avanços conseguimos nos últimos anos em relação à representatividade de profissionais trans no mercado brasileiro e à promoção da ambiência inclusiva?
Muitos avanços, afinal a gente teria mais de 600 empresas fazendo tudo isso que eu comentei anteriormente. Hoje em dia, eu nem procuro mais pelas companhias, são elas que buscam nossos serviços. Elas querem conversar, entender. Muitas já pagam cirurgia, hormônios para pessoas trans, e até mesmo ficam pensando em como fazer a inserção desses profissionais de maneira mais efetiva para que não seja mais um ou mais uma dentro da equipe, mas sim para fortalecer essa equipe onde as pessoas trans possam desenvolver um plano de carreira. É ver, por exemplo, o próprio CEO sentar com o colaborador e dizer “Eu quero entender”, já que normalmente são pessoas com mais idade. E que há, de fato, uma liderança que está de coração aberto para entender essa mudança e não impor regras. Eliminar antigos pensamentos como “Se você não é assim, se não usar esse dress code, se não fizer tal coisa, está fora, aqui não entra”. Essas atitudes estão acontecendo, e já podem ser consideradas como avanços. O mais importante é respeitar acima de tudo. A Atento, mais uma vez, antes mesmo de ter a lei que autoriza a mudança do nome e o sexo no registro civil, já fazia isso na prática. As empresas dão uma lição do que está acontecendo e está acontecendo muita, muita coisa.

MM360 – De que maneira as empresas podem atuar para reduzir e eliminar a discriminação e equidade de oportunidades em relação à identidade de gênero?
Podem atuar entendendo que além da responsabilidade social, pode agregar muito ao impacto social da marca fazendo muito mais do que simplesmente abrir espaços de empregabilidade. Hoje a gente vê empresas incríveis, com grupo de funcionários maravilhosos, que só aumenta a coesão da equipe, o espírito de humanidade, de empatia nas pessoas, que conseguem construir uma equipe diversa. Quando é assim, a equipe fica muito mais pulsante, tem uma dinâmica mais real do que quando divididas em baias, e as pessoas separadas, resolvendo cada uma a sua função como se isso fosse realmente a potência. A potência do coletivo está na soma da potência dos indivíduos que a compõem, senão o negócio não funciona.

Vemos as empresas atuando, indo a campo, conhecendo os trabalhos voluntários que a gente também faz. Somos ponte entre o movimento civil que a gente conhece e as empresas com seus colaboradores, justamente para ajudar a construir, a potencializar. As oportunidades podem acontecer de várias formas, como por meio de projetos internos e externos, além da mudança de mindset. Vemos muitas empresas mudando suas missões e valores para colocar a frente da inclusão e da diversidade como um valor capaz de potencializar missões e seus propósitos.

MM360 – Deixe algumas orientações para as empresas que pretendem avançar no debate e contratação de profissionais trans.
Vou deixar uma que vai valer por 100! Em nosso site, você encontra o projeto Agora Vai, feito em parceria com as dezessete maiores empresas contratantes de pessoas trans no Brasil, que nada mais é do que duas cartilhas gratuitas, uma com foco no RH e outra para profissionais transgêneros. Não precisa esperar a gente para iniciar essas contratações, para perderem seus medos. Lá tem perguntas sobre o que deve ou não fazer, como resolver as questões de benefícios, de empregabilidade. Os materiais são muito completos e são um bom caminho para as empresas que querem começar.

Não tenham medo do que não conhecem. Quando não souberem, perguntem.. Hoje, além da internet, temos também pessoas muito solidárias, abertas para fazer trocas por meio de networking. Ninguém sabe tudo, essa é a boa notícia. Nunca saberemos tudo, porque surgem coisas novas a todo momento. A diferença e a diversidade são a nossa maior igualdade. Negá-las ou não fazer nada para que a cultura organizacional da sua empresa seja mais inclusiva faz com que apenas você perca grandes oportunidades. Afinal, empresas que não se preocupam com diversidade e com sustentabilidade são aquelas que daqui 10 anos não precisarão nem se preocupar, porque não existirão. É simples.

MM360 – Hoje, 29 de janeiro, é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans. De que forma essa pauta pode estar em constante discussão, seja na sociedade ou no mercado corporativo, e não ficar restrita a apenas um dia por ano?
A primeira coisa é pensar que pessoas trans existem não somente no dia 29 de janeiro. Quando for chamá-las para estar na sua empresa, seja para palestrar, porque normalmente começa com uma palestra, um webinário, contrate essas pessoas. Paguem pelo tempo, o conhecimento e a vivência delas. Não queira tudo de maneira gratuita.

Venha conhecer o projeto Agora Vai que comentei antes, ele é totalmente gratuito e já estamos pensando em uma segunda edição das cartilhas. A TransEmprego está em um processo de que em 10 anos não queremos mais existir. Não queremos viver a vida inteira ensinando as pessoas algo que deveria ser natural do ser humano, que competências não tem a ver com essas especificidades. Parem com isso!

Vieses inconscientes, que nada mais são do que preconceitos que muitas vezes você transforma em discriminações, não podem acontecer. As empresas estão perdendo, a sociedade está perdendo. A gente não tem uma empresa ideal, porque não temos uma sociedade ideal. E não temos uma sociedade ideal, porque não somos humanos ideais. Estamos longe disso! Temos que buscar e voltar à essência da nossa humanidade para que a gente possa construir esse novo lugar que seja, como falei no começo, para todos, todas e todes.

Meu convite é de que pensem nisso de uma maneira holística. Que pensem também em interseccionalidade. Ninguém é só trans. A pessoa pode ser trans e periférica. Pode ser trans, periférica e negra. Pode ser trans, periférica, negra e ter uma deficiência. Pode ser trans, periférica, negra, ter deficiência e mais de 50 anos. Então, quer dizer, que a gente pode ser tudo. A gente pode ser plural. Pensem que as pessoas não são uma única questão. Lembrem da diversidade, inclusive nessas questões de interseccionalidade. E depois que você ler os materiais, vá conhecer o humano. Vá conhecer a pessoa. Vá conhecer esse mundo de humanidade. Se nós somos quase 8 bilhões de pessoas, isso quer dizer que somos 8 bilhões de identidades, 8 bilhões de pessoas com referências e estruturas diferentes.

MM360 – Deixe uma dica para as profissionais travestis e trans que estão entrando no mercado de trabalho e para aquelas que ambicionam um cargo de liderança.
As maiores portas de entrada para os profissionais, não só trans, mas de profissionais em geral, são os programas de jovem aprendiz, de estagiários, de trainees. Entrem nessas empresas por esses caminhos. Estudem. Não parem de estudar nunca. Vão atrás de coisas que vocês gostam. Na própria TransEmpregos divulgamos vários cursos gratuitos. Acabamos de fechar uma parceria grande entre a EF e o Bradesco, para dar 50 bolsas para profissionais trans estudarem inglês durante 2 anos. Acabamos de fechar também 30 bolsas de pós-graduação. Fechamos com muita frequência bolsas de graduação para que as pessoas possam se capacitar. Vá atrás. O mundo cada vez mais vai exigir dos profissionais competências, capacitações e aprimoramentos constantes. Não existe mais, como o Karnal diz e eu concordo plenamente, não existe mais a busca pelo profissional que seja formado, mas sim o que esteja aberto e em formação. Esteja em constante formação, independente da sua orientação, idade, credo e do local que você veio. Formação é quesito e adaptabilidade é a soft skill que a gente tem que desenvolver para tentar potencializar o melhor não só da humanidade, mas do ser humano.

Para aquelas que querem um cargo de liderança, o conselho é preparem-se. O universo corporativo é um universo de vida. Tem muita competitividade, as empresas inteligentes e humanizadas estão buscando essas ascensões cada vez mais da base e das pessoas que iniciaram e construíram a carreira junto à empresa. Elas valorizam muito isso. Então tente construir. Ache um lugar. Ache uma empresa. Leia não só sobre a vaga, mas vá atrás da empresa para saber se você se identifica com a missão e com propósito dela. Porque, afinal, a gente doa no mínimo 8 horas diárias para esse trabalho, para essa companhia e é muito pouco se for só pelo dinheiro. Busque por um lugar que você esteja trabalhando e que o seu trabalho esteja mudando também esse mundo para um lugar melhor. Para tornar o ser humano melhor e, consequentemente, uma sociedade melhor. Uma empresa melhor. Um mundo melhor.

Procurar empresas que investem realmente não apenas nas portas de entradas, mas na manutenção dessas pessoas e na capacitação. Empresas inteligentes hoje em dia são aquelas que seguem dois caminhos: elas atraem os melhores talentos e ao mesmo tempo continuam investimento neles com capacitações e treinamentos, sem medo nenhum de que concorrentes apareçam e que os levem embora. Elas não têm esse medo, porque seguem o segundo passo que é se transformarem em um ambiente tão incrível, tão maravilhoso, que por mais que na outra companhia o colaborador ganhe mais, ele fala não porque é na sua empresa que ele se sente bem. Busquem essas empresas. Elas existem. Elas estão aumentando. E se você não encontrar, pode me procurar porque dentro das empresas que a TransEmpregos atende, você vai encontrar.

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