Nos últimos anos, temos presenciados diversas mudanças climáticas relevantes impactando populações em diferentes pontos do mapa do mundo. Desde alterações em estações, impactos na vegetação, ondas de calor e frio, ciclos de seca e chuva, todos sintomas de um planeta impactado por séculos de uso de recursos sem planejamento, com consequências ainda imensuráveis para o futuro.
É inevitável que muitos de nós tentem refletir sobre seus hábitos e escolher práticas de consumo que, ainda que não consigam reverter o que já foi feito, tentem identificar a cadeia que aquele produto percorreu e qual a pegada que ele deixou no mundo até chegar em nossas casas. Nesse sentido, teria espaço para as tecnologias emergentes ajudarem a ampliar e assegurar essas novas práticas de consumo mais “verdes”?
Dentre as tecnologias emergentes, há cenários possíveis de uso da blockchain que se conectem com essas novas necessidades de consumo. É natural que a primeira associação ao ouvir a palavra “blockchain” seja Bitcoin – afinal, blockchain e criptomoedas estão intrinsecamente ligados. No entanto, a tecnologia blockchain tem valiosas aplicações muito além das criptomoedas, graças à sua natureza de transparência, rastreabilidade, descentralização e automação. Essas premissas permitem que a tecnologia alcance diversos usos e possibilidades, em setores que não costumamos pensar com tanta natureza a utilidade do seu emprego.
Entre esses setores, o ESG (sigla em inglês para Environmental, Social e Corporate Governance), movimento que se direciona à gestão dos impactos e riscos ambientais, sociais e de governança, imbui-se de todo o potencial para se beneficiar da aplicação dessa tecnologia. Tem-se visto nos últimos anos um aumento da preocupação das empresas e consumidores com os valores ESG, muito por conta de uma tendência regulatória global, mas também pelo valor que as boas práticas ESG agregam aos produtos e serviços pensados sobre esses pilares.
Esse terreno – principalmente o “E”, de Ambiente – ainda se mostra muito arenoso para os consumidores preocupados em adquirir produtos e serviços sustentáveis, que respeitem o meio ambiente e colaborem com a sua preservação e restauração. Infelizmente, tem sido comum se deparar com práticas de “greenwashing” da indústria, termo utilizado para definir ações que apenas “pintam” de sustentável um produto que, na verdade, não imprime características reais de sustentabilidade e respeito ao meio ambiente.
Um produto pode sofrer greenwashing de várias formas: desde um relatório de emissão de gases falsificado, por exemplo, ou uma cadeia de aquisição de matéria-prima desviada durante a logística para burlar uma legislação ambiental. Os casos são inúmeros, envolvendo indústrias automobilística, têxtil, alimentícia, que divulgam produtos que supostamente teriam um impacto menor no meio-ambiente ou nas comunidades envolvidas na sua produção, mas não passam de manejos desonestos de algumas companhias para melhorar sua imagem perante os consumidores.
Rastreabilidade e imutabilidade dos registros: segurança e transparência
Pensando, portanto, em atender tanto às demandas regulatórias e legais, quanto aos anseios dos clientes modernos, o uso da blockchain se destaca, principalmente, por sua capacidade de rastreabilidade e imutabilidade dos registros. Com esse recurso, o acompanhamento da cadeia de produção se torna mais eficiente, confiável e transparente, além de permitir relatórios mais completos e acurados sobre o caminho das matérias-primas e a emissão de poluentes daquele produto em questão.
O “livro-razão” imutável da blockchain permite que a cadeia de produção seja mais transparente, permitindo às empresas o rastreio dos materiais desde sua origem, identificando de forma mais clara e mensurável o uso de energia e as emissões de carbono na produção, além de auxiliar no controle de desperdícios no decorrer do ciclo de vida do produto.
Ao utilizar contratos inteligentes, as empresas podem automatizar o rastreamento das emissões de carbono em todas as suas operações. As informações podem ser reportadas para serviços de monitoramento e tornadas públicas, com a natureza criptográfica dos dados garantindo que eles não possam ser falsificados ou manipulados.
Descentralização: um novo passo em compliance
Em 2023, o ESG iniciou uma nova fase no Brasil: a fase regulatória. Alguns marcos dessa nova fase foram a publicação das Resoluções n.º 193, pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e da Resolução n.º 1.710, pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC), ambas em 2023. As resoluções, em síntese, tratam de padrões para relatórios de sustentabilidade e impactos ESG a serem observados por empresas e companhias privadas no Brasil, e estão alinhadas com as práticas recomendadas por importantes instituições internacionais, como a IFRS Foundation, fundação responsável por indicar padrões de relatórios financeiros no mundo todo.
De modo geral, as resoluções da CVM e do CFC integram os padrões internacionais às normas contábeis brasileiras e uniformizam os relatórios e publicações das agendas ESG nas empresas de capital aberto. A tecnologia blockchain, com seus bancos de dados descentralizados, pode ajudar essas organizações a medir e comprovar a conformidade com essa agenda.
Os participantes da rede, incluindo fornecedores, parceiros e setores internos, podem compartilhar informações relevantes, como rastreamento de produtos, emissões de carbono e condições de trabalho. Utilizando contratos inteligentes integrados à blockchain, esses dados podem ser automaticamente divulgados sem a necessidade de intervenção humana, evitando fraudes ou falhas no controle. Reguladores ou terceiros confiáveis podem acessar com segurança essas informações coletadas e verificar se as organizações estão cumprindo os padrões declarados. A tecnologia blockchain pode, assim, funcionar como uma ferramenta para aumentar a transparência nos esforços de ESG.
Mercado de greentokens
Por falar em CVM, não podemos esquecer de um importante uso da blockchain na atualidade: o mercado de créditos de carbono. Esse mercado surgiu para auxiliar o equilíbrio de emissões entre empresas, permitindo que companhias que possuem um nível de emissão muito alto e poucas opções para a redução possam comprar créditos de carbono para compensar suas emissões, como uma espécie de moeda.
Quando uma entidade consegue reduzir a emissão de poluentes, ela cria créditos que podem ser utilizados para negociar com outras entidades que não atingiram suas metas de redução, transformando essa dinâmica em um verdadeiro mercado. De acordo com um estudo da Câmara de Comercio Internacional, o Brasil pode movimentar cerca de US$100 bilhões de dólares em receitas de crédito de carbono até 2030 – um mercado relevante e promissor.
Nos últimos anos, muitas empresas se especializaram na tokenização de ativos verdes, principalmente de créditos de carbono. Essa tokenização só é possível, claro, por meio da tecnologia blockchain, e torna acessível a aquisição de créditos de carbono não apenas para empresas menores, mas também para pessoas físicas interessadas em diminuir sua pegada de carbono no planeta.
Inúmeras possibilidades, inúmeros desafios
Ao fixar os conceitos e recursos básicos da blockchain, somado com pouco de criatividade e normalização do uso pelo grande público, é possível pensar em imensuráveis usos para essa tecnologia. Doações para causas humanitárias ou fundações via blockchain, por exemplo, podem se tornar mais comuns e seguras, uma vez que a transparência e descentralização da rede permitiriam um acompanhamento do emprego desses recursos e dos montantes disponíveis, estimulando a confiança em projetos dessa natureza.
O acesso por pessoas que, por algum motivo, não podem participar do sistema financeiro tradicional, como refugiados ou comunidades isoladas, ainda é um sonho distante para muitos, mas que poderia encontrar soluções na tecnologia descentralizada. Há projetos de empresas como a MoneyGram que planejam soluções para transferência de dinheiro para refugiados por meio de carteiras digitais, que permitiriam a troca de criptomoedas por moedas funcionais em qualquer lugar do mundo.
No entanto, é importante reforçar que, apesar de uma realidade, a blockchain ainda é uma tecnologia emergente que está sob constante evolução, estudo e desenvolvimento e, desse modo, está longe de ser livre de problemas. Além de não ser acessível ao grande público, seja por falta de letramento nessa nova tecnologia ou por ausência de interfaces acessíveis com a rede, a blockchain não está livre de falhas e possui dificuldades de escalabilidade, o que a torna um recurso relativamente caro e com baixo retorno para as empresas.
É inegável, afinal, que essa tecnologia permite o acesso a uma série de novos recursos importantes para desenvolvimento e ampliação de práticas ESG, e essas possibilidades valiosas se sobrepõem aos desafios atualmente apresentados pela blockchain. Como dito anteriormente, os impactos do consumo tradicional nos últimos anos têm retornado de forma negativa nos aspectos ambientais e sociais, e utilizar tecnologias emergentes para contribuir com a amenização desses impactos pode se tornar uma atitude relevante nos próximos cenários.
Por Gabrielle Ribon, advogada e entusiasta de inovação. Atua no mercado financeiro com foco em novos produtos e tecnologias. É especialista em Creative Technologies pela Miami Ad School e titulada LL.M em Direito Tributário pelo Insper.
(Enviado por Ela Comunica)