Como cultura sempre foi artigo de primeira necessidade na família Sant’Anna, meu pai aproveitou nossa estadia em Londres para frequentarmos os clássicos. 

Por clássicos, me refiro ao balé do Convent Garden Theatre, Lawrence Olivier contracenando com sua mulher, Vivien Leigh (a Scarlett O’Hara de “E o vento levouGone with the Wind”), Maria Callas se apresentando em Aida, além de algumas tragédias shakespearianas como Otelo

Não vou ser falso nesta crônica e dizer que exultei com esses espetáculos que, na época, aos 12 e 13 anos, achava enfadonhos. Mas hoje em dia sinto enorme orgulho por ter pais que me obrigavam a adquirir cultura. 

Até hoje me lembro do mouro Otelo matando sua amada, Desdemona, com uma facada, contaminado por uma intriga de Iago. 

Mas havia programas culturais que os meninos Sant’Anna gostavam muito, entre eles visitar os museus de História Natural e de Ciência, o célebre museu de cera Madame Tussauds e o Museu Britânico. 

Ah, já ia me esquecendo do evento mais importante ao qual comparecemos: a coroação da rainha Elizabeth II, no dia 2 de junho de 1953. 

Não, não estivemos na abadia de Westminster, onde ocorreu a cerimônia. Meu pai não tinha essa bola toda. Mas tinha dólares que valiam uma fortuna. 

Com isso, ele pôde comprar cinco lugares numa arquibancada montada no The Mall, aquela avenida de asfalto vermelho que vai do Admiralty Arch até o palácio de Buckingham, contornando no final (ou no início, dependendo da perspectiva) aquela rotatória que tem ao centro o monumento erguido em memória da rainha Victoria, tetravó da rainha que estava sendo coroada naquele dia ensolarado de verão. 

Passados mais de 70 anos, me lembro como se fosse ontem da carruagem dourada, puxada por oito cavalos, em que Elizabeth II, tendo ao lado o marido, Phillip, duque de Edimburgo, desfilou para a multidão eufórica. 

Pouco depois da coroação, e aproveitando as férias escolares, fomos passar três meses em Paris. Nos hospedamos no Hôtel Du Louvre, ao lado do museu que lhe dá o nome, e dando início, ou fim, à Avenue de L’Opéra, em cuja outra extremidade fica a Ópera de Paris. 

Tal como acontecera em Londres, mais programas culturais: museu do Louvre, Les Invalides, onde está o magnífico túmulo de Napoleão, óperas e balés. 

Para nós, meninos Sant’Anna, o que mais valeu foi subir no alto da Torre Eiffel, conhecer o Arco do Triunfo, assistir um jogo de futebol no antigo Parc des Princes e visitar o Museé de l’Armée (Museu das Forças Armadas), que nós chamávamos de “museu dos soldadinhos de chumbo”, pois com eles eram encenadas as principais batalhas travadas pelo Exército e pela Marinha francesa ao longo dos séculos. 

O ponto alto dessa estadia em Paris foi um show de luzes e cores (Sons et Lumières) no Palácio de Versailles, representando a Revolução Francesa, inclusive a morte na guilhotina do rei Luís XVI e da rainha Maria Antonieta. 

Em meio a essa estadia em Paris, fizemos uma breve viagem de trem à Bélgica e à Holanda. 

Na Bélgica, fomos até o local onde se travou a batalha de Waterloo, 138 anos antes, quando as tropas de Napoleão foram derrotadas pela coalizão de exércitos ingleses e prussianos, comandada pelo duque de Wellington. 

No local, os belgas montaram um gigantesco painel de 360º que ilustra a posição dos soldados das três nações que participaram da luta decisiva. 

Fomos também à Brügge, que considero a cidade mais charmosa da Europa, com mais canais do que Veneza. Foi lá que surgiu, no século 13, a primeira bolsa de valores do mundo, que deu o pontapé inicial do capitalismo no planeta. 

Na Holanda, visitamos Amsterdam e Roterdam, sendo esta segunda cidade, na ocasião, uma das mais modernas da Europa, já que fora totalmente destruída na Segunda Guerra Mundial, em 1940, e tivera de ser refeita. 

O motorista de táxi que nos levou para conhecer a cidade revelou que perdeu a mulher e os filhos no ataque da Luftwaffe (Força Aérea Alemã). 

Assim, meu irmão Sérgio e eu íamos adquirindo cultura não só de arte como de história também. 

De volta à Londres, e à St. Anthony’s School, já estávamos fluentes em inglês e havíamos aprendido alguns rudimentos de francês. 

Meu pai decidiu que antes de voltarmos ao Brasil faríamos um giro pela Europa Ocidental. 

Um jantar divertidíssimo de Natal em nosso hotel em Londres (havíamos entregado o apartamento em Olympia), mostrou que a ideia de minha mãe de passar a festa de 1952 em Madri fora errada. 

Naquela época, era proibida a venda de bebidas alcoólicas no Reino Unido, a não ser nos pubs na hora do almoço. 

Então os fregueses e proprietários dos bares usavam do seguinte estratagema: traziam um prato de comida junto com a cerveja (ou gin, uísque etc.). O prato retornava intocado para a cozinha (depois ia para outra mesa) e o freguês podia encher a cara em paz. 

Já na noite de réveillon, a bebida era totalmente liberada. 

No dia 1º de janeiro de 1954, partimos para o giro europeu, que descreverei na próxima semana. 

Ivan Sant’Anna 

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