Por: Marília Carolina Barbosa de Souza Pimenta
A América do Sul há décadas tem sido identificada como a maior produtora de cocaína do mundo. Para além disso, nas fronteiras fluviais amazônicas, crimes ambientais, como o desmatamento para exploração de madeira e a mineração ilegal (que também ocorrem há décadas na região), têm adquirido um novo status ao se vincularem com o tráfico de drogas.
Sabe-se que o território amazônico vem sendo afetado pela mineração ilegal e que houve um incremento substancial na última década, gerando inúmeros efeitos ambientais e sociais na região. O documento[1] “Nuevo estudio identifica 49 zonas afectadas por la minería ilegal en la Amazonía”, da organização Mongabay, traz um importante panorama sobre o fenômeno. Publicado em outubro de 2023, o estudo indica a existência de 58 zonas afetadas pela mineração em bosques ou rios, sendo que 49 são focos ilegais de mineração na Amazônia.
Nota-se uma grande concentração de zonas de exploração ilegais (fluviais e terrestres) no Peru, em suas zonas fronteiriças com a Colômbia, na tríplice fronteira com a Colômbia e Brasil, com a Bolívia e sobretudo com o Equador. Vale mencionar que esses territórios têm demandado “forças extras”, com emprego de empresas de segurança privada, que podem servir ao Estado e/ou aos grupos de mineradores ilegais, o que tem gerado muitos conflitos na região.
Há uma série de elementos cruciais nesse fenômeno que se referem ao ciclo de subdesenvolvimento em que estão inseridas as populações que habitam o entorno dessas regiões: a prática de mineração ilegal contamina as águas, afeta a fauna e impede que atividades legais transcorram normalmente nessas localidades. Afora isso, a mineração impulsiona outras atividades ilegais, como a venda de armas, a lavagem de dinheiro e a prostituição. E vem sendo alvo de interesse de grupos do narcotráfico de maior alcance, com cooperações logísticas entre si. O ciclo do subdesenvolvimento, portanto, vem acompanhado da presença da violência que intimida, ameaça, isola e ataca comunidades locais, especialmente povos originários que habitam esses territórios.
Desde a década de 1980, vem crescendo a atividade de mineração ilegal na região da tríplice fronteira Venezuela-Colômbia-Brasil, atingindo, na fronteira entre Venezuela e Brasil, o Território Indígena Yanomami. Os rios afluentes Orinoco e Rio Negro se tornaram importantes espaços de dragagem, onde, por meio de grandes escavadeiras, o fundo dos rios é “remexido” em busca do ouro. Utiliza-se mercúrio para separar o ouro da terra. Há, nesse processo, ao menos duas consequências imediatas: o “lameamento” das águas, em que os rios vão ficando turvos, afetando a fauna, a pesca, e a própria navegabilidade; e a contaminação dos rios por mercúrio, afetando diretamente a fauna e as populações locais.
Isolamento das tribos indígenas
Outra consequência direta deste processo é o isolamento e a consequente fome das tribos indígenas, que passam a se locomover pelos rios com maior dificuldade perante os operadores da mineração ilegal, que bloqueiam os rios com os maquinários e impedem sua passagem. Segundo o Ministério da Saúde e inúmeras fontes[2] divulgadas a partir de 20 de janeiro de 2023, entre 2018 e 2022, 570 crianças Yanomamis morreram como consequência da contaminação por mercúrio, desnutrição e fome.
Existem, nesse caso, relatos de violência aberta, ameaças e intimidação à população indígena. Observam-se também episódios de conivência e omissão governamental, o que poderia ser indício de corrupção nestas regiões. Assim, todo o arco leste da região amazônica está sendo cercado pelo desmatamento, do mesmo modo como é possível visualizar o “sufocamento” da Terra Indígena Yanomami, cercada por focos de mineração ilegal, pistas clandestinas e o próprio desmatamento. Vale notar que tanto os desmatamentos quanto os focos de mineração ilegal seguem as margens dos rios afluentes, sendo esses, portanto, os “corredores naturais” para tais atividades.
Segundo o relatório[3] do Instituto Igarapé, dos lados colombiano e venezuelano, as atividades de mineração ilegal ocorrem, entre outros atores, sob o controle de dissidentes das ex-Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e pelo Exército de Libertação Nacional (ELN).
Enquanto isso, no Brasil, conforme relato obtido em entrevista a um militar colombiano, em setembro de 2023, tem ocorrido uma cada vez maior atuação do Primeiro Comando da Capital (PCC), que está dando cobertura tática à operação da mineração ilegal em troca de percentuais da exploração do ouro. Na prática, essa organização criminosa passa a ser a manutenção e controle da “segurança” desta operação na região. As pistas clandestinas, nesse sentido, muito próximas aos rios afluentes e às zonas de mineração ilegal, teriam uso duplo: escoamento de drogas e de ouro, sendo controladas (seu custo operacional e segurança) por grandes grupos de narcotraficantes.
Acerca da presença do crime organizado, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) publicou, em junho de 2023, o Informe Especial intitulado “Segurança Pública e Crime Organizado na Amazônia Legal[4]” a fim de mostrar o exponencial crescimento da presença do crime organizado na região amazônica, acompanhado do aumento dos números da violência na região.
A região da Amazônia Legal corresponde a 59% do território brasileiro e engloba oito estados – Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parcialmente o Maranhão. Nela residem 56% da população indígena brasileira. O território possui a maior biodiversidade do mundo e uma riqueza a partir da presença dos povos indígenas imensurável[5]. (IPEA, 2008)
Segundo o Informe, desde 2012, a região possui índices de violência mais elevados que a média nacional. Dentre os estados, o Amazonas apresentou a maior taxa de crimes violentos letais intencionais: 33,1/ 1000.000, sendo que a média nacional é de 19/100.000. No ano de 2021, segundo os dados do FBSP, o Estado apresentou sua média histórica, com 36,8/100.000, maior índice desde 2009. (FBSP, 2023:5)
De acordo com Atlas da Violência, divulgado pelo IPEA, fica evidente que Amazonas, Roraima, Amapá (estados fronteiriços), Ceará e Bahia são os estados mais violentos do país, o que corrobora a presença de facções na região, em franca disputa pelas rotas internacionais de tráfico de drogas. Apenas em novembro de 2023, o estado do Amapá superou em mais de 100% a média nacional, com 50,6/100.000 mediante 23,3/100.000 da média nacional, seguido do estado do Amazonas, com 38,8/100.000, que segue crescendo, mediante 36,8 /100.000 do ano anterior. As rotas internacionais do tráfico da região amazônica fazem circular 40% do volume total de recursos vinculados ao tráfico de cocaína, que corresponde a 4% do PIB brasileiro.
Disputa de facções
O Norte do país está, portanto, sob franca disputa[6] de diferentes grupos neste momento. E é possível verificar que o Comando Vermelho (CV), facção surgida no Rio de Janeiro, assumiu, em nível nacional, uma disputa com o Primeiro Comando da Capital (PCC) no Norte e no Nordeste, e hoje é o grupo que mais cresceu na região, tendo disputado intensamente com facções locais, como a Família do Norte, por exemplo, que foi derrotada nos últimos anos.
Entre Letícia e Tabatinga, por exemplo, pode-se observar a incidência de tráfico de armas, contrabando de pescado e biopirataria, migração ilegal internacional, tráfico de drogas, contrabando de madeira, entre outros. Já nas rotas entre Pacaraima e Santa Elena Uairén, há a incidência de contrabando de minerais, imigração ilegal internacional, tráfico de armas, e tráfico de drogas. Vale ressaltar que tais regiões coincidem com aquelas onde há os maiores números de assassinatos de indígenas, o que, portanto, complementa a percepção do quadro geral dos crimes e da violência na região.
Essa complexa interação entre facções na região vem seguindo uma lógica de concentração do monopólio das atividades com a intensificação da presença mais recente do CV na região. Ademais, como também foi possível observar na já mencionada entrevista com militar colombiano, o PCC diversificou suas atividades, formando alianças táticas com grupos de mineração ilegal, e com grupos ligados à prostituição na região.
Esse fato é, sem dúvida, um dos fenômenos que mais explicam a explosão no número de homicídios na região, sobretudo no Amapá e no Amazonas. Outro aspecto que se pode notar é o processo de “interiorização” ou “capilarização” que os grupos vão criando, a partir de pressões fronteiriças, rumo ao interior, especialmente fazendo uso dos sistemas penitenciários para atuar conforme o modelo do PCC. Todos os municípios que estão em disputa observam a presença do CV e do PCC, e em outras regiões, o domínio de um e de outro já se torna mais visível.
A governança do crime se modificou nos últimos anos na região, de modo que duas grandes facções brasileiras hoje disputam territórios e municípios em toda região amazônica: o CV e o PCC, com uma vantagem para o primeiro em termos de territórios conquistados e parcerias com facções locais, como o grupo proveniente da fronteira entre Venezuela e Colômbia: Tren de Aragua. A complexidade, portanto, do tema das ameaças que hoje assolam a região amazônica e as comunidades que ali residem está em ao menos quatro grandes frentes, como a (I) tendência à disputa nacional entre o PCC e CV; (II) a diversificação das operações para além do tráfico de drogas, como a mineração ilegal e a prostituição; (III) a “interiorização” e penetração nos municípios adjacentes de tamanho médio e pequeno; e, por fim, (IV) maior “sufocamento” e “isolamento” das comunidades indígenas que habitam no Território Indígena.
Finalmente, nota-se que o narcotráfico tem se somado à mineração ilegal e causou danos irreparáveis aos povos Yanomami, gerando pactos de conveniência e explosões de violência, em busca do controle e domínio destas regiões, seja da rota da cocaína, seja do domínio das áreas de mineração; causando ameaças, isolamento, fome, contaminação, exploração sexual, entre outras ameaças aos povos que ali habitam. Buscou-se, assim, chamar a atenção para os danos causados não só ao meio ambiente, mas às populações locais, sobretudo ribeirinhas e indígenas. E nos faz questionar sobre qual é o legado que estamos deixando para gerações futuras? Somos responsáveis pela omissão diante do genocídio de povos indígenas e danos irreparáveis ao Meio Ambiente?
Certamente que sim. Marília Carolina Barbosa de Souza Pimenta é professora do Departamento de Relações Internacionais da UNESP-Franca. Pesquisadora visitante da Syracuse University-Mohynihan Inst
[1] MONGABAY. Nuevo estudio identifica 49 zonas afectadas por la minería ilegal en la Amazonía. 2023. Disponível em: https://es.mongabay.com/2023/11/zonas-afectadas-por-mineria-ilegal-en-amazonia/. Acesso em 25/03/2024.
[2] FIOCRUZ. O Garimpo Ilegal e o genocídio Yanomami. 2023. Disponível em: https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/rr-invasao-de-posseiros-e-garimpeiros-em-terra-yanomami/. Acesso em 25/03/2024
[3] INSTITUTO IGARAPÉ. Amazônia Saqueada: As Raízes do Crime Ambiental nas regiões de Tríplice Fronteira. 2023. Disponível em: https://igarape.org.br/amazonia-saqueada-as-raizes-do-crime-ambiental-nas-regioes-de-triplice-fronteira/. Acesso em 25/03/2024
[4] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Informe Especial. Segurança Pública e Crime Organizado na Amazônia Legal. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/seguranca-publica-e-crime-organizado-na-amazonia-legal/. Acesso em: 25/03/2024.
[5] IPEA. O que é? Amazônia Legal. Desafios do Desenvolvimento. 5(44). 2008. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2154:catid=28. Acesso em 25/03/2024
[6] FOLHA DE SÃO PAULO. Comando Vermelho e PCC avançam para presídios de quase todos os estados. 14/12/2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/12/comando-vermelho-e-pcc-avancam-para-presidios-de-quase-todos-os-estados.shtml. Acesso em 25/03/2024.
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