No dia 20 de junho, a frente “Vamos Juntos pelo Brasil”, formada pelos partidos PT, PSB, PCdoB, PV, PSOL, REDE e SOLIDARIEDADE, que compõe a chapa Lula-Alckmin, publicou um documento intitulado “Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil”.
Segundo sua página introdutória, os pontos elencados serão a base para o Plano de Governo. Dessa forma, isso lembra muito a “Carta ao Povo Brasileiro”, que foi divulgada em 2002, quando a coalizão da época disse que, dentre outras coisas, não iria dar calote na dívida nem no FMI, que seria pró-mercado, criando até o apelido para o futuro presidente de “Lulinha paz e amor”.
Os efeitos do documento foram profundos e, dessa vez, temos algo bem parecido, mas cujas pessoas parecem ter ignorado de forma geral.
O texto elenca 121 pontos de destaque, abrangendo diferentes tópicos. Vamos aqui resumir aqueles que consideramos mais relevantes para a economia brasileira e para o mercado financeiro, fazendo referência aos parágrafos específicos a que se referem para quem quiser consultar o documento original.
Assim, segue um resumo dos principais pontos:
1 – 2. Precisamos reconstruir o Brasil e a democracia.
3. A política econômica vigente é a principal responsável pela decomposição das condições de vida da população, da instabilidade e dos retrocessos na produção e consumo. Setores estratégicos do patrimônio público são privatizados, bancos públicos e empresas de fomento sendo destruídas e o quadro na infraestrutura é desolador.
4. Políticas sociais estão sendo mutiladas, como as conquistas de certas minorias. Isso por causa da falta de investimentos em educação e saúde, ao mesmo tempo em que a Cultura é criminalizada.
6 – 10. Basicamente, se comprometem com a agenda ESG (do inglês, environmental, social, and corporate governance. Na tradução, governança ambiental, social e corporativa).
11. Voltar a inserir o Brasil nos organismos internacionais multilaterais.
12 – 13. Ampla proteção social aos trabalhadores, principalmente aos autônomos, que trabalham por conta própria, como teletrabalho e trabalhadores em home office ou mediados por aplicativos, revogando marcos regressivos da legislação atual.
14. Reestruturação sindical.
15. O Governo vai investir em infraestrutura e educação para criar empregos, dentre outros setores. Reforma agrária.
16. Subir o salário mínimo.
17. Reformar a previdência para ficar maior e incluir todos os brasileiros, desmontando o modelo regressivo atual.
18- Alimentação para todos. Fortalecimento do SUS. Um programa Bolsa Família mais abrangente.
19 – 30. Investimentos em Educação, Saúde, Cultura, Habitação e Segurança Pública e Social.
31 – 35. Estratégias de Segurança Públicas serão mudadas, principalmente com relação ao tráfico de drogas, que será menos bélico e mais baseado em inteligência e investigação.
36. As mulheres deixarão de ser discriminadas e marginalizadas, ganhando salários iguais em todas as profissões.
37 – 40. Focada em questões raciais, reforçando a política de cotas.
41 – 46. Proteção de povos indígenas, jovens e crianças.
47 – 50. Investimento na economia através do governo federal ou empresas estatais.
51 – 52. Fim do teto de gastos. Super-ricos pagando mais impostos.
53 – 54. Reforma tributária buscando simplificação, queda da sonegação e justiça social.
55. Combate à inflação.
56 – 58. Criação de estoques reguladores de combustíveis. Nova política de preços focada no repasse dos ganhos do pré-sal para a sociedade.
59. Reduzir a volatilidade na moeda brasileira através de uma política de intervenção mais ativa.
60. Renegociar as dívidas de 66 milhões usando os bancos públicos e privados.
61 – 64. Aumentar o investimento público, via financiamento e compras governamentais.
65 – 69. Melhorar a produção agrícola.
70 – 76. Retomada do investimento em infraestrutura, sendo que o capital privado poderá ser parte importante. Recompor o papel coordenador do Estado e das empresas estatais.
77 – 79. Se opõem à privatização da Petrobras, Eletrobras e Correios.
80. Fortalecimento dos bancos públicos, como BB, CEF, BNDES, BNB, BASA e a FINEP, principalmente para a concessão de crédito de longo prazo e fornecimento de garantias em projetos estruturantes.
81 – 96. Investimentos em tecnologia e a digitalização do Brasil. Revigorar o Turismo, o empreendedorismo, a economia solidária, sem deixar de cuidar do lado ambiental, mas sempre com o protagonismo do Governo Federal.
97 – 108. Reforçar a democracia e o protagonismo do Brasil como líder na América Latina e patrocinador de políticas que ajudam países mais pobres.
109. Serão construídos novos mecanismos de participação direta de grupos no orçamento federal.
110 – 121. Transparência e combate à corrupção.
Em suma, nos interessa principalmente aquilo que é objetivo, dado que grande parte do documento não é. O que fica extremamente claro, é que o governo será muito maior e mais intervencionista em todas as facetas da economia, chegando até na política cambial e monetária, o que em tese violaria a independência do Banco Central.
Também pretende-se voltar não só com a reforma trabalhista e o modelo sindical, mas até com a da Previdência. Se farão, é outra discussão, mas é o que diz claramente o texto. Outra coisa que chama muito a atenção, é a quantidade de novos direitos e investimentos que serão criados sem sequer apontar de onde virão esses recursos: apenas o fim do teto de gastos e da cobrança de impostos dos super-ricos não fecha a conta de médio e longo prazo.
Além disso, se o governo sair expandindo o crédito, teremos uma nova onda inflacionária, o que poderia causar um descontrole de preços e, posteriormente, um provável ciclo de alta adicional. Esse cenário para a Bolsa traz evidentes ganhadores e perdedores: se você é um amigo do governo, vai ter crédito mais barato do que seus concorrentes. Se você é um setor estratégico ou destino de recursos estatais, terá uma vida tranquila, principalmente se souber agradar o partido.
Empresas ligadas ao aumento do poder de compra da população mais pobre também serão beneficiadas no curto prazo com o primeiro movimento de expansão de crédito, porém, depois tendem a sofrer quando a inflação voltar a subir.
O mercado de renda fixa deve ficar com taxas mais elevadas por mais tempo por receios fiscais. O câmbio tende a se beneficiar dessas taxas mais altas num primeiro momento e com o Banco Central intervindo na venda da moeda para ajudar a baixar a inflação por um tempo, mas, no longo prazo, é difícil saber.
Resumindo, é um modelo muito diferente do que temos hoje, trazendo diversos riscos e oportunidades. Para mim, que sou um convicto de um modelo de Estado menor e não intervencionista, e dado que eu já vi a capacidade de estrago das políticas sendo sugeridas, tudo isso é muito preocupante, mas seria um exagero dizer que algo nessa lista me surpreende.
Tenho apenas uma exceção, o item 109: “serão construídos novos mecanismos de participação direta de grupos”. Para bom entendedor, isso é sinônimo de criar sovietes, grupos que entram tomando o poder do Congresso como representantes do povo, mas que no fundo são guiados pelo Governo Federal. Esse tipo de coisa explícita pode tornar a atual oposição do Congresso ainda mais forte, uma vez que o ambiente de 2022 é muito diferente do de 2002, quando a caneta de presidente tinha muito mais força.
Tempos estranhos.
Rodrigo Natali, estrategista-chefe na Inv Publicações.