Entrevista com Claudia Pitta, líder de projetos de desenvolvimento da cultura ética em organizações, avaliação e aprimoramento da governança corporativa e estratégia ESG, fundadora da Evolure Consultoria. Claudia Pitta é advogada por formação e, antes de tornar-se consultora, atuou por 18 anos em departamentos jurídicos de grandes empresas, inclusive como Diretora Jurídica, bem como em escritórios de advocacia. É graduada e Mestre em Direito pela UFRGS, professora na Saint Paul Escola de Negócios, no IBGC e em outras organizações. É conselheira de administração do IBGC.

Acionista – Quais práticas, entre diretrizes e ferramentas de gestão sustentável, deverão adotar os sócios e líderes de uma organização, para se diferenciarem em práticas da dimensão “S” do ESG?

Esta primeira pergunta é muito oportuna e a respondo por meio do meu tema master de trabalho: cultura ética. Entretanto, para adentrar nesse tema, é preciso compreender, primeiramente, o que houve – e ainda vem ocorrendo – com governança corporativa e ESG (Environmental, Social and Governance).

Empresas, muitas vezes, cumprem um checklist de formalidades e acreditam estar no caminho certo para alcançar um patamar de suposta excelência em governança. O mesmo se dá com ESG: empresas têm adotado alguns programas ambientais e ações sociais e afirmam que “ESG está em seu DNA”. Assim, ESG enfrenta um problema semelhante àquele que a governança corporativa enfrentou e tem enfrentado: ser encarado como um mero checklist de práticas, políticas, programas, códigos e regras superficiais.

Ora, governança e ESG são, fundamentalmente, manifestações da Ética e isto muda completamente a lógica acima descrita. O foco inicial não deveria ser em checklists previamente definidos, mas na cultura ética que precisa ser desenvolvida e servirá de base tanto da governança quanto de ESG.  

A Ética, conforme definida pelo novo Código das Melhores Práticas do IBGC, representa um conjunto de valores e princípios, o qual orienta o comportamento e viabiliza a convivência e a evolução das pessoas, em sociedades crescentemente mais complexas.

Ainda sobre a Ética, podemos afirmar que ela se origina do senso de coletividade e interdependência que motiva os indivíduos a contribuírem para o desenvolvimento da sociedade, direcionando suas ações em prol do bem comum. E mais: a Ética não se limita a um conjunto de práticas, sendo fundamentada em princípios que guiam o comportamento individual e coletivo.

Em suma, antes de nos concentrarmos em ações práticas, tanto de governança quanto de ESG, temos que desenvolver uma compreensão mais profunda. Primeiramente, os líderes precisam avaliar a maturidade da cultura ética de suas organizações, entendendo como ela é percebida pelos stakeholders internos e externos. A partir dessa compreensão, esses líderes poderão elaborar uma estratégia ESG que reflita os valores e a cultura da organização – e que, portanto, seja genuína.  

Como se percebe, existe um passo inicial que precisa ser enfrentado. E será preciso tratar de questões por vezes complexas – ter o que eu chamaria de conversas difíceis –, para que se possa caminhar com segurança e de modo verdadeiro. Sem essa sustentação, ESG seguirá incorrendo no mesmo erro inicialmente ocorrido com a governança corporativa: o equívoco da implementação de iniciativas sem uma fundamentação sólida e que cria mudanças realmente profundas.

Acionista – Em sua opinião, o 6º Código do IBGC, publicado recentemente, inovou no que diz respeito à Ética?

Sim, certamente. A 6ª edição do Código de Melhores Práticas do IBGC inicia relembrando o leitor que a Ética é o fundamento da governança corporativa. E acrescenta um novo princípio ético, como o primeiro da lista: integridade, que implica praticar e promover uma cultura ética, manter a coerência entre o discurso e a prática, demonstrar lealdade à organização e evitar conflitos de interesse. Esse princípio convida as organizações a refletirem e desenvolverem a cultura ética.

Se uma empresa está envolvida em práticas como fraude contábil, pagamento de propinas e manipulação de licitações para obter contratos públicos, qual é sua legitimidade para, por exemplo, implementar uma política séria de inclusão? Suas práticas ilegais reforçam a desigualdade social! É incoerente – e, portanto, contra o princípio da integridade – fazer discursos e programas bonitos, enquanto se gera tanto prejuízo social e até ambiental (pensem nas empresas que pagam propina para obter licenças ou livrar-se de multas ambientais). Sem o fundamento da Ética, sem a criação de uma cultura ética, iniciativas como dar uma chance profissional a estagiários negros não significarão evolução corporativa. Muito provavelmente, o objetivo será apenas o de ajudar a criar uma falsa narrativa, para demonstrar que a empresa é aquilo que, essencialmente, ela não é.

É importante dizer que a governança corporativa requer outros princípios éticos, além da integridade: transparência, equidade, responsabilização e sustentabilidade, todos presentes no novo Código do IBGC. Esses princípios já existiam, mas mudamos sua terminologia e deixamos seu conteúdo ainda mais claro e objetivo.

Sintetizando: não se pode afirmar que uma empresa tem governança se não cultiva a cultura ética e comportamentos individuais que estejam alinhados com os cinco princípios citados. O desenvolvimento de um mundo melhor e mais sustentável depende da transformação cultural, da mudança do modo de pensar das pessoas. Este é um aspecto fundamental, frequentemente negligenciado nas discussões.

Na busca do desenvolvimento das pessoas e da cultura, eu gostaria de destacar uma iniciativa recente do Pacto Global: os “Objetivos de Desenvolvimento Individual” (IDGs). Esses objetivos podem acelerar os esforços na direção dos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) da ONU, ajudando a responder à pergunta: quais habilidades individuais precisamos desenvolver para avançar na Agenda 2030 da ONU? Em minha opinião, esta é uma pergunta essencial e que deveríamos estar discutindo.

Acionista – O recente 24º Congresso do IBGC focalizou a governança corporativa e a conexão com stakeholders. O tema do Congresso está conectado ao S do Social de ESG?

Sem dúvida. O S do Social está intrinsecamente relacionado a ouvir anseios de públicos importantes para a organização – e refiro-me a ouvir com atenção, buscando entender, aprender, refletir e criar mudanças na realidade. Ouvir, seguramente, é uma prática importantíssima para ESG. E observo que participar de um Congresso com os temas mencionados em sua pergunta é, também, uma oportunidade ímpar de ouvir atentamente e aprender, para construir mudanças.

O programa do 24º Congresso do IBGC foi riquíssimo em diversidade, novas perspectivas, outros repertórios. Tive a honra de moderar o painel da Pantys, empresa que criou calcinhas menstruais com tecido e embalagens biodegradáveis, sendo a primeira etiqueta carbono neutro do mercado de vestuário brasileiro. Envolvida com o ODS 12 do Pacto Global da ONU no Brasil (Consumo e Produção Sustentáveis) e com produtos que reduzem impactos em emissões de carbono, a Pantys tem contribuído para um debate com implicações ambientais e sociais relevantes. Quando nos vestimos de forma ambientalmente mais inteligente, estamos criando mudança cultural e social.

Como se percebe, ouvir os stakeholders é crucial. Assim como ouvir aqueles que podem nos agregar conhecimento e experiência. No fundo, tudo isso é aprendizado que, ao ser colocado à disposição da sociedade e ajudá-la em suas necessidades, ajuda a reforçar o S do Social de ESG.    

Acionista – Voltando às práticas antes citadas, quais foram fortemente intensificadas pela pandemia COVID?

Em minha opinião, a pandemia COVID não trouxe uma realidade completamente nova, mas destacou, de maneira evidente, a extensão da nossa interdependência e a dependência das empresas e demais organizações em relação ao ecossistema ambiental e social, não apenas no âmbito local, mas globalmente.

A pandemia nos alertou sobre a necessidade de uma profunda compreensão dessa interdependência e de melhor gerenciar riscos. Um conselheiro ou executivo competente precisa estar ciente dos riscos geopolíticos, das mudanças climáticas, das possíveis pandemias. As fronteiras entre Estado, sociedade e empresas estão se tornando menos definidas, aumentando a complexidade na identificação e gestão de riscos. A polarização política, por seu turno, começa a influenciar o ambiente organizacional e as decisões de consumidores e investidores. Em suma, a gestão de riscos mostra-se muito mais complexa.

A pandemia trouxe à tona questões da esfera social – e aqui retornamos ao “S” de ESG. Pessoalmente, eu esperava que um evento tão impactante como uma pandemia tivesse provocado uma transformação maior nos líderes e nas pessoas do que percebo que ocorreu. Poderia ter havido um salto ético nas organizações. Isso não significa menosprezar o que foi realizado pelas organizações durante a pandemia, mas, ao mesmo tempo, é pertinente fazer a seguinte pergunta: o aprendizado pós-pandemia foi realmente profundo, como poderia ter sido?

A meu ver, o aprendizado e a evolução poderiam ter sido maiores, não apenas durante, mas após a pandemia. Refiro-me aos aprendizados mais profundos e duradouros sobre o que significa ser líder, empresário, conselheiro ou executivo realmente empático, que se preocupa com seus stakeholders.

Ao mesmo tempo, lembro que existe uma grande disparidade de maturidade entre empresas localizadas nos grandes centros, conectadas com movimentos globais, e a grande maioria das médias, pequenas e microempresas, bastante distantes desse diálogo. No entanto, mesmo as empresas mais maduras não parecem estar totalmente preparadas para lidar com as ramificações de uma crise relacionada a riscos sistêmicos, como geopolíticos, agitações sociais, mudanças climáticas e pandemias, entre outros. Ainda estamos em estágios iniciais desse processo de gestão de riscos.

Acionista – Quais são, afinal, as principais lacunas éticas da nossa cultura brasileira? Estamos preparados para colocar em prática o “S” do ESG?

Nossas lacunas éticas, como sociedade, setor privado e nação, a mim parecem evidentes. O termo accountability sequer possui uma tradução adequada para o português. Muitas e muitas vezes, temos sido tolerantes com desvios, seja em relação à violação da lei ou a desvios éticos, como fazer algo errado, mesmo quando não há uma lei específica que proíba determinadas condutas.

Em relação a grandes escândalos corporativos que temos testemunhado, de variadas naturezas, cabe questionarmos: quantas pessoas tinham conhecimento do desvio e não tomaram nenhuma atitude? Quantas pessoas não sabiam, mas deveriam ter investigado para descobrir a verdade? Quantas pessoas sabiam e queriam agir, mas não tiveram a coragem necessária? Todas essas atitudes são influenciadas pela cultura vigente, que indica quais os comportamentos esperados das pessoas que testemunham esses malfeitos. Quando eles finalmente são descobertos, parece uma grande surpresa. Mas raramente é.

A verdade é que temos o que eu chamaria de cultura de silêncio moral, em que questões éticas não são reportadas ou discutidas e que precisa ser superada. Ao mesmo tempo, sei que é preciso coragem para enfrentar essa cultura, que o desafio está muito longe de ser algo trivial. A psicóloga Brené Brown, renomada especialista, aborda o tema, destacando que não há nenhum ato na vida profissional que nos torne mais vulneráveis do que cobrar a ética e os valores das outras pessoas. Agir com integridade, tanto em relação a nós mesmos quanto aos outros, requer grande dose de coragem.

Costumo afirmar que a longevidade e a prosperidade de uma empresa, assim como a adoção da agenda ESG estão fundamentadas em três pilares essenciais: cultura, governança e estratégia. É preciso uma cultura ética para embasar uma governança robusta. E é preciso conexão com a estratégia. Uma abordagem não alinhada com esses três elementos não promoverá mudanças. Esses três fundamentos devem ser trabalhados de forma integrada, com foco nos temas socialmente relevantes para o setor, a atividade ou a organização.

Em muitos casos, é imprescindível abordar questões delicadas, levantar assuntos sensíveis nas discussões dos conselhos, enfrentar as conversas difíceis, conforme dito, pois somente assim poderemos evoluir. Nesse sentido, acredito que tanto os líderes empresariais quanto os cidadãos ainda têm muito a aprender. Em minha carreira como consultora, palestrante e professora, meu objetivo sempre foi provocar reflexões, estimular as pessoas a saírem de suas regiões de conforto e a questionarem práticas arraigadas, mas que precisam mudar, em prol da organização, daqueles que dela dependem e da sociedade em geral.

Acionista – Quais são as implicações mais profundas da Ética em nossos comportamentos?

Quando eu comecei a me dedicar à ética organizacional e ao desenvolvimento de culturas éticas, mergulhei profundamente nas ciências comportamentais. Além de compreender as formas pelas quais a filosofia delineava como os seres humanos deveriam se comportar, meu interesse se voltou para a compreensão de como os seres humanos realmente se comportam, especialmente no contexto das organizações.

Somos influenciados por fatores culturais, sociais, legais, políticos e institucionais. Em nosso País, por exemplo, a percepção de impunidade é um fator significativo que contribui para o atraso ético. As leis, muitas vezes, não são aplicadas com equidade e alguns grupos de indivíduos não enfrentam as devidas consequências por infrações. A percepção de impunidade influencia a cultura ética nas organizações, na sociedade e no nosso comportamento individual muito mais do que gostamos de admitir.

Além disso, estamos sujeitos a influências de fatores organizacionais, desde os incentivos financeiros até os aspectos mais abstratos da cultura interna, como a linguagem utilizada, o silêncio moral, a falta de segurança psicológica e as várias racionalizações que frequentemente empregamos. Frases como: “se eu não pagasse aquela propina para ganhar a licitação, meu concorrente o faria e eu perderia a oportunidade” podem ser típicas de contextos empresariais. Ou então “eu faço isso porque todo mundo faz”. Ou ainda: “se eu não fizesse, nossa empresa seria excluída do mercado”.

A combinação desses fatores, gradualmente, mina o nosso senso ético, enfraquecendo conexões neurais cruciais para o controle de impulsos antiéticos. A cultura tem um impacto profundo no funcionamento do cérebro. O ambiente em que vivemos, social e organizacional, pode influenciar negativamente a atividade do córtex pré-frontal, responsável pela nossa capacidade de considerar as consequências de atos a longo prazo.

Assim, quando alguém afirma que “a ética é ensinada em casa”, isso é verdade, mas também é verdade que, muitas vezes, ela é desaprendida, em função das influências da vida externa e do ambiente profissional. Sendo assim, a forma como uma empresa aborda questões éticas pode extrair o melhor ou o pior das pessoas, dependendo da cultura empresarial na qual essas pessoas estão inseridas.

Acionista – À luz das suas reflexões anteriores e, sobretudo, da Ética, qual seria o set mínimo ESG – a pauta mínima a ser adotada no contexto corporativo?

Arriscando-me a parecer repetitiva, enfatizo que é essencial promover as conversas difíceis, algo que, muitas vezes, nos esquivamos de fazer. Mas é preciso enfrentar a realidade, este é o caminho. Nessa linha, em meu trabalho como consultora, conduzo avaliações organizacionais com base em escalas que medem a maturidade da cultura ética, ESG e governança corporativa.

O estágio inicial da avaliação mencionada é aquele no qual a organização não está engajada em nada relacionado aos temas citados, carece de consciência sobre eles e não está em conformidade com as leis, encontrando-se em um estágio pré-legal. O segundo estágio de maturidade, que considero como o patamar mínimo necessário, é o da conformidade, que envolve o cumprimento das leis, incluindo a Constituição Federal e as legislações trabalhistas, ambientais e de proteção ao consumidor entre outras. Quanto ao terceiro estágio, este significa ir além do que a legislação determina. É um estágio de responsabilidade, em que se busca “fazer a coisa certa”, para além do que é obrigatório.

A meu ver, se o segundo estágio, apenas, fosse o nosso foco, estaríamos muito mais avançados nos objetivos da Agenda 2030 da ONU. O Brasil já teria alcançado um nível mais elevado de desenvolvimento nas esferas social, ambiental e econômica. Para ilustrar, o desmatamento ilegal é uma das principais fontes de emissões de gases de efeito estufa (GEEs) no Brasil, apesar da proibição legal. No entanto, a lei não é aplicada corretamente, devido à corrupção no processo de fiscalização, à ineficácia do Poder Judiciário e outras distorções. Este é apenas um exemplo que demonstra o quanto o Brasil, nossas empresas e nossa sociedade poderiam ter avançado muito mais se, simplesmente, cumpríssemos a legislação. Portanto, minha visão é que a prioridade mínima das organizações do Brasil deve ser o CUMPRIMENTO DA LEI. Para mim, este é o set mínimo de sustentabilidade que faz sentido.

Acionista – A senhora publicou neste Portal Acionista um artigo sobre a participação das mulheres nos conselhos de administração: Mulheres no Conselho: basta uma? Como percebe as tendências dessa participação?

A terceira edição da pesquisa “Análise da participação das mulheres em conselhos e diretorias das empresas de capital aberto”, publicada este ano pelo IBGC, indicou a participação de 15,9% de mulheres nos conselhos de companhias abertas no Brasil. Nos últimos anos, essa participação vem aumentando de forma gradual, porém lenta.

Aproximadamente 34% das companhias pesquisadas ainda não têm mulheres em seu conselho. E, dentre as 65,8% que contam com mulheres no colegiado, em várias delas, há uma única conselheira.

No artigo que publiquei aqui há alguns meses, defendo que os benefícios da diversidade no conselho são mais sentidos quando há duas ou mais mulheres no conselho. O mesmo raciocínio vale para outros grupos subrepresentados. Por isso, a prática recomendada é de participação mínima de 30% de mulheres.

Acionista – Por fim, o que a senhora considera mais gratificante em suas atividades profissionais?

Atualmente, uma coisa que me orgulha é ter construído um caminho de carreira próprio, como consultora, palestrante, professora e conselheira, que me permite atuar com independência, defendendo meus valores e convicções.

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