Quem sou eu? Essa dúvida vem junto a uma crise existencial que a deixa à beira do abismo do vazio. O gatilho para tudo isso? … Relações abusivas, em todas as instâncias e aspectos – sim os abusos têm seus atravessamentos. Algumas são sutis, outras escancaradas.
Ela percebe que não tem mais o brilho nos olhos, o sorriso nos lábios aliás, se sorrir poderia gerar uma discussão por ciúmes. Esses sinais foram os últimos a serem identificados, ele “seguiu o roteiro “Sim, abusadores seguem um roteiro e, são, extremamente envolventes! O início parecia inacreditável, realmente ela tinha muita sorte!
Um dia em uma festa ela bebe um pouco a mais, ele a puxa pelo braço dizendo que exagerou! Começa então a se sentir culpada, por desagradá-lo. Comentários pejorativos sobre a família, trabalho, as amigas se tornam a cada dia mais frequentes. Ela que era uma mulher independente, com uma vida social intensa está mais isolada. Quase não sai se não for com ele. Para trabalhar ele leva e busca, afinal de contas ele pode dar esse conforto! A aparência física também muda, roupas largas, pouca maquiagem melhor não chamar a atenção.
Ela tentou sair da situação por duas vezes, mas a fragilidade era tanta que cedia as promessas de mudança. Ela sai e volta para a relação. Após alguns meses ela tem uma crise de ansiedade, vai para o hospital com a sensação de que vai enfartar. No outro dia está abatida, prostrada sem coragem de ir trabalhar e a hora de sair para o trabalho lhe gera pânico. Episódios como esse se tornam frequentes e então finalmente ela escuta o conselho de um amigo e busca um psiquiatra, e um psicólogo começando então uma nova fase. Aos poucos ela entende o que está acontecendo, a tristeza pela fragilidade e fraqueza é imensa.
Finalmente, ela cria coragem e pede a separação. Novamente ele vem com presentes, promessas, mas dessa vez as coisas estão diferentes. Com medo ela propõe que continuem amigos e, de certa forma, ele ainda tem acesso a casa dela. A gota d’água foi quando mesmo separados ela encontrou um celular dentro do sofá que gravava tudo que ela falava em casa. Ele tinha acesso a toda a sua rotina. Dali para frente ela não queria mais nenhum contato, no início foi difícil, ele insistiu, mas logo ela soube que ele havia se mudado de cidade e estava em outro relacionamento. Foi um alívio!
A situação financeira ainda era crítica, mas a confiança e coragem que um novo ciclo se iniciava era maior que qualquer medo. Aos poucos foi se formando um novo círculo de amigos que ajudaram nos processos de se reerguer financeiramente indicando trabalhos e novos clientes. As coisas começaram a mudar e a “mulher Profissional” despertou.
Ela ainda tem crises de ansiedade. Estar online no WhatsApp era sinal de alerta, essa sensação demorou para passar, ela se sentia culpada e o medo aparecia. Ela resolve fazer uma viagem e ao fazer as malas, se deu conta de como mudou seu visual, resolveu então inovar. Ainda faltava uma mulher despertar! Ela precisava mergulhar nos braços da mãe Iemanjá e sair de lá fortalecida, renovada.
O retorno de Salvador dá início a uma nova fase. A mulher despertou. Após 5 anos ela se permite entrar em um novo relacionamento com todos os sentidos aguçados. Para ela o normal é estranho, aos poucos ela começa a entender o que é uma relação saudável e normal. Sem controle, ciúmes, brigas.
Histórias como essa acontecem todos os dias, infelizmente nem todas têm esse final de superação e recomeço. Quando falamos em abuso pensamos automaticamente no abuso físico, mas existem outras formas de abuso. Abuso social, abuso emocional, abuso financeiro, abuso sexual. Todos esses abusos deixam marcas, traumas e colocar um fim nesse ciclo é algo difícil, mas libertador. Hoje em dia, ela entende que para amar o outro, seja ele quem for primeiro precisa estar inteira e para isso é necessário se reconhecer, saber o seu valor.
Os fatos narrados são reais e podem acontecer com qualquer mulher. Depois de algum tempo ela compreendeu que contar a sua história ajudava muitas mulheres a se identificar e perceber que sim existe uma saída.
“Iemanjá abençoe as mulheres que mergulham no infinito de si mesmas e voltam para contar a história de seus renascimentos, doce ou salgada, sempre fluida. É na imensidão das águas que Iemanjá banha nossos olhos com as sutilezas. Ela me voltou aos detalhes e eu nunca mais me perdi!” (Ryane Leão)
Maiara Medeiros, Psicóloga clínica especialista em vítimas de abuso e saúde da população negra. Gestora de Projetos da Odabá Associação de Afroempreendedores. Membro do Grupo Mulheres do Brasil. Parceira e voluntária do Grupo Mulheres em Construção. Consultora de empresas na área de psicologia organizacional.