Quando ocorrem escândalos corporativos, no exterior ou no Brasil, muitos questionam as razões pelas quais analistas, profissionais de investimentos e investidores não teriam antecipado o ocorrido. Todavia, o trabalho desses agentes não é trivial e neste artigo, tecemos algumas considerações sobre dificuldades que eles têm na antecipação de tsunamis corporativos, apresentando nossa visão sobre como lidar com os referidos desafios

1) A questão da falta de ética

A atuação de empresas e de seus líderes e liderados, com base em princípios éticos, é uma das premissas fundamentais do capitalismo de stakeholders, estágio atual do sistema capitalista. Nesse estágio, exige-se mais do que retornos econômicos para os proprietários dessas organizações: espera-se, também, grande atenção a necessidades planetárias e àquelas de outros públicos também importantes, os stakeholders, ou seja, seus públicos relevantes, que alguns preferem tratar como públicos estratégicos.

Por que mesmo se exige ética na administração das empresas e demais organizações da economia? Primeiramente, porque comportar-se de maneira ética é a coisa certa a ser feita, quando se pensa no Planeta e nos públicos supracitados. E em segundo lugar, porque a ética é, simplesmente, base da confiança, requisito crucial para a realização de transações, com ou sem o objetivo de retorno econômico. Se falta ética, falta embasamento seguro às transações de todos os tipos. Se falta ética nas transações econômicas, a economia se fragiliza.

Sendo assim, espera-se, ou melhor, exige-se que as empresas e demais organizações da economia atuem com base em princípios éticos. Lembramos que são princípios clássicos de governança corporativa a transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa. Esses e outros princípios costumam estar presentes em Códigos de Conduta empresariais.

A falta de ética pode se dar, na realidade organizacional. de diferentes maneiras. Nas sociedades com ações em bolsa de valores, uma primeira possibilidade é que ela seja iniciada em nível dos sócios, descendo aos conselhos de administração e fiscal, à diretoria executiva e a áreas críticas para a operação das anteriores, não necessariamente contaminando todas essas instâncias. E várias outras possibilidades contemplam a violação de princípios éticos abaixo dos sócios. Independentemente do caso concreto, o efeito final da falta de ética é que esta pode prejudicar seriamente o ecossistema socioeconômico povoado pelos stakeholders de uma empresa.

Se princípios básicos de governança corporativa são violados, especialmente no âmbito da cúpula organizacional ou de áreas críticas para o seu bom desempenho, torna-se muito difícil – por vezes, quase impossível – antecipar o que virá. E na falta de ética começam, portanto, as dificuldades do trabalho de analistas, profissionais de investimento e investidores que acompanham o desempenho de empresas.

2) A questão da contabilidade criativa

Quando dirigentes de uma empresa com ações em bolsa fazem um anúncio ao mercado de capitais informando que as suas demonstrações contábeis estavam incorretas, tendo apresentado, por exemplo, vultosos lucros inflados por razões diversas e o consequente pagamento indevido de também substanciosos dividendos, é inevitável reconhecer: o trabalho da contabilidade prejudicou seriamente as avaliações e percepções dos agentes do mercado; podendo ter adentrado na esfera da violação de princípios éticos.

Contabilidade criativa não tem apenas implicações internas. Quando esse tipo de contabilidade vem a público, as auditorias externas aparecem como personagens importantes. A pergunta “por que os auditores não perceberam o que houve?” emerge em muitas mentes, isto é, de fato, inevitável. Ao lado do trabalho da contabilidade interna das empresas, o das auditorias independentes é muito importante para a segurança dos esforços dos analistas, profissionais de investimento e investidores que acompanham e analisam o desempenho de empresas. Lembramos que na década de oitenta, a auditoria Arthur Andersen, uma das maiores do Planeta, que atuou no escândalo da Enron, nos EUA, foi por ele arrastada.

Ao mesmo tempo, é importante reconhecer: auditores independentes não são investigadores policiais, não atuam na esfera criminal. Sua missão, de maneira objetiva, é verificar se as demonstrações financeiras de uma empresa refletem adequadamente, ao tempo de sua análise, os saldos suportados por documentação hábil, em base de teste. Pode-se questionar se as práticas das auditorias requerem reformulação, para melhor captarem problemas contábeis, mas não se pode, sem um entendimento aprofundado, concluir que uma auditoria deve ser responsabilizada por contabilidade criativa.  

Feitas essas reflexões, resta concluir que, em suma, se a contabilidade é criativa, novamente, torna-se muito difícil ou quase impossível antecipar o que virá. Enfrentar a contabilidade criativa é a segunda grande dificuldade enfrentada por analistas, profissionais de investimento e investidores que acompanham o desempenho de empresas.

3) A questão da incompletude das bandeiras de aviso

Diversas variáveis são estimadas e monitoradas por analistas, profissionais de investimentos e investidores que acompanham empresas e sua performance, tais como o endividamento (cotejado com o endividamento médio do setor da empresa), o pagamento de dividendos (vis-à-vis do histórico da empresa ou da média do setor), o custo de capital, o uso de ferramentas financeiras, como derivativos e outras, os riscos da empresa, avaliados à luz do setor e das especificidades corporativas, a matriz de materialidade e outras.

As variáveis acima citadas são monitoradas por agentes do mercado, os quais dependem, conforme dito, de uma atuação baseada em princípios éticos e de uma contabilidade confiável.  Entretanto – e isso vale para os mercados do Brasil e de outros países – os mecanismos de vigilância ainda não são completos e não conseguem cercar 100% das ocorrências possíveis. E podem ser consideravelmente prejudicados por condutas antiéticas e contabilidade criativa. A criatividade de predadores corporativos, de fato, pode surpreender.

Mesmo com as dificuldades, as bandeiras amarelas e vermelhas agregadas ao trabalho dos agentes são de grande importância para ajudar na identificação de situações de risco corporativo. Até porque nem sempre uma fraude começa como fraude, mas como um pequeno desajuste na contabilidade empresarial, que, todavia, pode crescer adiante e se tornar fraudulento, em níveis inimagináveis. Sendo assim, históricos de acompanhamento do desempenho de empresas podem ser muito relevantes para identificar problemas.

Dito isso, cabe dizer que a terceira dificuldade enfrentadas por analistas, profissionais de investimento e investidores que acompanham o desempenho de empresas corresponde ao reconhecimento de que as bandeiras vermelhas e amarelas existentes ainda se mostram incompletas para cercar problemas, o que se torna ainda mais complexo quando falta ética e a contabilidade é, afinal, criativa.

Como lidar com os desafios?

Na realidade, muito tem sido feito para melhorar as condições de atuação de analistas, profissionais de investimento e investidores, senão vejamos:

  1. Nos EUA, a partir dos anos oitenta (caso Texaco), emergiu uma espécie de ativismo de investidores institucionais, decorrente de desmandos corporativos, que culminou em um movimento global em prol de boas práticas de governança, o qual, aliás, chegou ao Brasil.
  2. No início do Novo Milênio, a Lei Sarbanes-Oxley (2002) foi uma resposta dura do estado norte-americano a novos escândalos corporativos (Enron, WorldCom e outros).
  3. Em 2008, a crise subprime trouxe mais problemas em empresas (como a falência do banco Lehman Brothers e as dificuldades financeiras de outros); novas pressões por governança corporativa foram criadas.
  4. Em anos recentes, emergiram fortes cobranças pelo uso de ESG – Environmental, Social, and Corporate Governance – e pelo banimento de práticas abomináveis a exemplo do greenwashing, marketing duvidoso e que não reflete uma atuação ambiental realmente séria e comprometida com problemas reais do Planeta.

Os esforços podem e devem prosseguir, destacando-se aqui a grande importância da atuação assertiva dos agentes do mercado.

No Brasil, os níveis de cobrança dos agentes, favorecidos por tecnologias de comunicações à distância, como já ocorre no exterior, aumentaram, mas pode haver espaço para mais busca de entendimento das empresas, especialmente via ferramentas técnicas. E em nossa opinião, a atuação assertiva dos agentes de mercado, associada à busca contínua de melhorias no sistema de bandeiras amarelas e vermelhas são de grande importância para identificar parte dos grandes problemas corporativos anunciados ao mercado.

Lembramos os leitores de algo importante: combater o eventual predadorismo corporativo não é tarefa apenas de analistas, profissionais de investimento e investidores, mas das próprias empresas – na realidade, seus modelos de gestão são o começo de tudo! –, de organizações do estado e daquelas que regulam o mercado de capitais. O desafio é complexo, sendo que nela, a empresa, reside a necessidade de orquestrar as dimensões básicas do modelo de gestão, criando-se uma orquestra societária com propósito, ética, governança e sustentabilidade.

Finalizamos sugerindo a leitura das duas matérias abaixo, publicadas na Revista RI – Relações com Investidores, que completa, neste mês de março, 25 anos, sendo a publicação mais longeva do mercado de capitais nacional. Ambas as matérias foram inspiradas no caso Americanas.

Revista RI • Nº 269 • MAR 23 • TSUNAMIS CORPORATIVOS: POR QUE ACONTECEM? POR QUE NÃO SÃO ANTECIPADOS?

Uma reflexão profunda sobre as causas internas e externas às empresas, as quais podem criar tsunamis corporativos.

Revista RI • Nº 268 • FEV 23 • ESCÂNDALO AMERICANAS: O TSUNAMI DE 11/01/2023

Visão de 14 especialistas sobre o que pode ter ocorrido na Americanas.

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