Se já há alguns anos esse dia deixou de ser comemorado com flores e almoço de secretárias em muitas empresas, talvez mais do que nunca esse dia precisa de gritos e não flores! Sim meninas e jovens, foi assim que o Dia da Mulher foi comemorado durante grande parte da minha vida. Almoço de secretárias patrocinado pelas empresas de cosméticos entre outras produtoras de produtos para elas. Na saída… uma rosa.
As delicadas e femininas mulheres do lar, recatadas, que fiquem com suas flores, porque a maioria das mulheres brasileiras luta hoje sozinha contra o machismo tóxico, a violência e a fome! Não escapam da violência, mesmo que sutil, as recatadas ou as que estão trabalhando nas empresas por todo o Brasil, mesmo que escolham não falar sobre o assunto por se sentirem privilegiadas… ou por medo. Já me senti assim.
Quem assistiu ao Profissão Repórter dessa semana viu muitas mulheres, sozinhas, na luta diária para encontrar algo para dar de comer aos filhos. Depois de assistir e me colocar na pele daquelas repórteres e entrevistadas, nem dormir consegui. Devemos muito ao Caco Barcelos e sua coragem. É essa mulher que o programa mostrou que tem que ser homenageada. Homenageada com luta, luta das poucas mulheres que conseguiram outro espaço na sociedade seja como artistas, executivas, intelectuais. Cada vez mais essas mulheres avançam. Essas não passam fome. Aplaudo cada uma de pé, as conscientes, porque sei um pouco e imagino o resto, como foi a difícil corrida de obstáculos pela qual passaram para chegarem a ter voz. Mesmo a mulher que atravessou alguns portais não escapa de piadas, brincadeiras, ironias ou uma mão boba no seio, como aconteceu recentemente na câmara de deputados em São Paulo.
Vamos gritar para que as políticas públicas, destruídas nos últimos anos sejam restauradas, para que novas políticas venham a ajudar todas as mulheres na sua diversidade, e para que possam ter espaço para respirar e viver! Nesse momento da pandemia são, como sempre, as mulheres que atuam contra a fome e pela proteção do COVID para suas famílias e comunidades. São elas também as mais empreendedoras, sendo absolutamente criativas no “corre” para um grão de alimento cair no prato. São elas que cantam, improvisam lives, fazem quentinhas, inventam máscaras, bonecas e se reinventam nesses tempos macabros, não só pelo ataque do vírus, mas também pelo governo assassino que permitimos acontecer.
Não é dia para flores, não é semana para homenagens singelas de fundos cor de rosa. É dia para gritos fortes contra tudo que oprime a mulher. Comecei a trabalhar com 20 anos numa agência de publicidade e foi lá que ganhei minha primeira rosa no Dia da Mulher. O mesmo espaço que me permitiu conhecer bem de perto o machismo. Mulheres eram secretárias como na série Mad Max. Estavam nas agências de propaganda para servir a um homem diferente daquele que ela já servia em casa, mas ainda servir. Eu fui, por um acaso da vida uma exceção: contratada como assistente de gerente de contas. Mas, doía o ouvido, as piadas, os olhares, as gracinhas, as conversas na calada do corredor. Entendi logo que ser mulher “executiva” era ainda uma novidade, cercada de preconceitos, que às vezes dava sentido para meu lado guerreiro. Aprender como o mundo do poder funcionava, como as grandes corporações pensavam e trabalhavam, instigava minha curiosidade e acho que um pouco por isso fiquei na publicidade. Por ironia, meu primeiro trabalho numa agência de propaganda foi refazer o livrinho que eu mesma havia lido aos 13 anos para novas crianças mulheres. O livreto da Johnson e Johnson que ensinava o que era menstruação… nada mais mulher! Depois atendi a conta de Modess, na época o único absorvente higiênico que existia no Brasil. Andava pelos corredores com a embalagem de Modess nas mãos… afinal eu trabalhava com ele todo dia. Fazia isso menstruada e passava no banheiro e ria por dentro pensando no que “eles” pensavam. Estaria eu “naqueles dias”? Esse era o motivo da minha irritação ou mal humor? E eu escrevia poesia no banheiro para dar dignidade a minha existência. Acho que todo jovem escreve poesia por isso… para ter uma reserva de dignidade, os que tem talento explodem as reservas mais tarde, para enfeitar o mundo, outras como eu guarda em pastas pela vida toda.
Um dia, depois de ter conseguido dizer à secretária que não sabia o que era caixinha de entrada e saída, (kkk hoje já ninguém quase sabe o que é isso…) tomei a decisão: ou fico e enfrento ou vou embora agora. A secretária, muito mais velha, olhava com enorme desconfiança para aquela menina que chegava e que não entendia nada do funcionamento de escritórios. Só podia estar ali porque algum diretor estava interessado nela, era esse seu pensamento que depois de um período de conquista ela acabou me confessando. Para piorar eu era bonitinha.
Cansei de escrever textos para o Dia da Mulher e por causa disso, cá estou escrevendo mais um… não quero celebrar nossas vitórias… quero colocar luz sobre nossos fracassos. Como explicar que depois que tantas décadas que passaram da minha entrada no mercado de trabalho, apesar de tanto discurso, palestra etc., ainda temos que falar sobre? Como explicar os dados sobre violência que vi agora numa publicação do Fundo de Investimento Social Privado pelo Fim das violências contra Mulheres e Meninas, um fundo multissetorial e multiempresarial em prol do acolhimento e proteção das mulheres e meninas em situação de violência? O feminicídio cresceu 22% com o isolamento social, as denúncias para o 180 cresceu 40%. Saudades da Nilcéa Franco e da Secretaria das Mulheres, muitas coisas foram feitas… parecia que avançávamos… lei Maria da Penha e a criação do próprio 180. Esse tema é só mais um que retrocedemos nesses 3 anos e não adianta dizer que tudo é culpa da pandemia! Plantamos todo dia sementes de narrativas de ódio e de violência e não vamos colher flores!
Hoje não é dia para ganhar rosas, repito, hoje é dia de luta e luto pela morte de tantas! As próximas gerações vão nos cobrar e perguntar o porquê nos escondemos. Todas as iniciativas são importantes para salvar e proteger a mulher, é ela a que transforma nossa sociedade e não podemos cair no campo de batalha. Caso não encontre brecha para fazer nenhuma transformação, pode escrever um texto e gritar: Socorrrooo!
Por Nádia Rebouças, Colunista de Plurale