Em dezembro do ano passado, a COVID-19 foi descoberta na China e no momento em que escrevemos este artigo, a pandemia alcança 10,89 milhões de pessoas pelo Planeta; entre estas, 521.862 perderam suas vidas infectadas pelo vírus, segundo detalhado painel de acompanhamento da Johns Hopkins University.
Muito se tem dito e escrito sobre a deterioração do quadro socioeconômico global e o chamado novo normal criado pela crise sanitária. Sobre tal deterioração, os sinais são vários. Apenas para exemplificar, se no final de 2018 os estoques totais de dívida global atingiam US $ 229 trilhões, ou seja, mais de duas e meia vezes o PIB mundial (UNCTAD, 09/03/2020, Trade and Development Report), pode-se esperar um endividamento muito maior desde o início da crise, em função de medidas necessárias para socorrer seres humanos e organizações.
Por demanda da sociedade, especialistas em economia têm expressado suas opiniões sobre como lidar com a crise sanitária e a inevitável crise econômica dela decorrente. O desafio é de grandes proporções, e o cidadão leigo frequentemente não imagina o que há por detrás de um sistema econômico e quais medidas necessárias devem ser implementadas para mitigar ou reverter os efeitos da crise.
Existem ordenamentos jurídicos (conjuntos de normas constitucionais e legais) e paradigmas (concepções) de Estado a estes associados que conferem sustentação às economias e suas atividades, requerendo grande atenção dos propositores de medidas econômicas. E na base desses dois elementos, há uma sociedade a ser considerada e seus indivíduos; deles emana o poder em função do qual normas e estruturas estatais assegurarão direitos individuais, sociais, dispersos e muito mais. Estamos nos referindo a cidadãos cada vez mais preocupados com direitos e preservação ambiental do Planeta.
Os bons economistas sabem que as regras do jogo legais e o modelo de Estado estão fortemente associados com a economia e suas atividades de atendimento de necessidades humanas e planetárias. Feita essa consideração, e na impossibilidade de tratar, por questão de espaço, ainda que de forma resumida, os variados tipos de normas legais, apresentamos abaixo, sucintamente, os três paradigmas ou modelos clássicos de Estado, associados os vários ordenamentos jurídicos, após o que, concluiremos a resposta à pergunta do título deste artigo.
Estado Liberal
O Estado Liberal de Direito ou Estado Liberal nasceu na Inglaterra, que passou por um processo de construção legal distinto daquele da Europa Continental. O Direito ali construído foi resultante da aliança entre nobres e religiosos, a qual teve como propósito proteger a propriedade privada da ambição do rei. O Direito Romano não teve influência sobre o Direito Inglês (Statute Law), disseminado para os EUA e outros países de influência anglo-saxônica. As principais premissas do Estado Liberal são a valorização dos indivíduos e sua proteção em relação ao Estado. Indivíduos têm, nessa perspectiva liberal, a liberdade de agir, desde que não violem os direitos de outros indivíduos; ademais, o Estado de Direito preconiza o livre mercado e a minimização do papel do Estado na Economia.
Estado Social
O Estado Social é egresso, conceitualmente, na Europa Continental, sendo a antiga União Soviética a primeira região a buscar um modelo de estado nessa concepção. O bloco soviético foi extinto, mas o Estado social existe em variados formatos e diferentes países, preconizando a importância dos direitos sociais. Esse paradigma de Estado recebeu, no Ocidente, influência do Direito Romano, que agregava elevado nível de racionalidade e, portanto, terminou por preponderar em relação ao Direito Canônico, dominante durante a maior parte da Idade Média. As principais premissas do Estado Social são as garantias de direito e acesso a bens e serviços pela grande maioria da população de um país, os quais, sem a interveniência do Estado, jamais seriam acessados.
Estado Democrático de Direito
O Estado Democrático de Direito ou Estado Democrático emerge em países que passaram por ditaduras, a exemplo da Espanha, de Portugal e do Brasil. Procura assegurar o respeito aos direitos humanos e garantias fundamentais aos indivíduos, buscando exorcizar o passado antidemocrático por meio das regras estabelecidas e dificultando sua mudança. É influenciado pelo Direito Romano. As principais premissas desse paradigma são a garantia da democracia e o respeito aos direitos humanos (com grande ênfase) e sociais. Na Constituição Federal brasileira, especificamente, destacam-se o artigo 5º e outros caracterizados como “cláusulas pétreas”, ou seja, que não podem ser mudadas, a não ser que se construa e aprove uma nova Constituição.
Existem várias críticas de negativas a positivas aos três paradigmas acima citados, apontando virtudes e defeitos, mas os Estados nacionais navegam entre essas alternativas, com as devidas especificidades. Não pretendemos, nestas breves linhas, discutir paradigmas, mas fazer uma breve reflexão sobre os desafios de enfrentar crises econômicas de grandes proporções e/ou de implantar medidas de alto impacto em prol da economia, à luz do paradigma vigente de Estado e de outros fatores que podem influenciar decisões políticas. Consideraremos dois exemplos: o primeiro, relacionado aos EUA, Reino Unido e Europa Ocidental, e o segundo, ao Brasil, para ilustrar os desafios citados.
Mencionemos, inicialmente, o tratamento institucional dos públicos que tentam ingressar nos EUA, Reino Unido (Inglaterra, principalmente) ou em países desenvolvidos da Europa Ocidental (Alemanha, França e outros), os quais sonham com uma vida melhor. Cada país lida ao seu modo com essa questão, tratada com maior ou menor nível de tolerância, conforme o paradigma de Estado criado pelas normas vigentes (há grandes diferenças), os grupos políticos mais influentes e a força das manifestações sociais. Concretamente, podemos afirmar que as decisões dificilmente serão apenas de ordem econômica, no sentido de impedir, ou no sentido oposto, de favorecer a entrada de estrangeiros nos vários territórios nacionais. Tentemos achar um contexto igual entre dois países: não é possível.
Passemos ao segundo exemplo, do contexto brasileiro. Nosso sistema tributário é complexo e injusto, sendo amplamente reconhecida a necessidade de uma Reforma Tributária, não apenas para simplificar os tributos cobrados de cidadãos e organizações, mas também para tornar o sistema justo – ou pelo menos mais justo. Políticos brasileiros da esquerda à direita têm apontado a necessidade de mudanças que impactarão a economia nacional, com inevitáveis diferenças de visões. A injustiça do sistema tributário é incontestável, eis o elemento comum. E existem grandes tensões entre o governo federal e governos estaduais e municipais em busca de mais recursos. Neste exemplo – novamente! – o paradigma de Estado criado pelas normas, os grupos políticos influentes e as manifestações sociais criarão implicações que vão muito além da seara econômica.
Retornando à pergunta do título deste artigo “desafios econômicos são simplesmente econômicos? ”, respondemos, com base nas considerações e exemplos anteriores: não, grandes desafios econômicos são muito mais do que econômicos, eles são multifacetados e complexos. Suas soluções necessitam ser enfrentadas por economistas e profissionais de vários campos de conhecimento. E também por profissionais com formações multidisciplinares. Grandes criadores de ideias da História não estudaram apenas Economia, ou Direito, ou Administração, por exemplo; eles foram além e estudaram muito, muito mais.
E quanto à crise COVID-19? Não existem referências sobre as soluções adequadas para a crise instalada na economia global, tão conectada, em proporções outrora inimagináveis. Mas podemos afirmar: elas são multifacetadas e multidisciplinares. Para que a crise atual seja superada no Brasil ou qualquer outro País, será necessária a união de forças entre Estado, iniciativa privada, terceiro setor e a sociedade, com muita criatividade e racionalidade. Será preciso buscar um novo normal não apenas na seara econômica, mas no modo de fazer as coisas acontecerem nas leis, na educação, na saúde, na moradia, no trabalho, no lazer, na segurança e em muitas outras dimensões.
Finalizando, ainda não sabemos até quando conviveremos com a obrigatoriedade do uso de máscaras e o afastamento e isolamento sociais, ou até qual patamar de profundidade a crise alcançará, mas é preciso criar cenários e nos preparar para neles viver, com esperança, planejamento e muito trabalho.
CIDA HESS: Economista e contadora,especialista em finanças e estratégia. Mestre em Contábeis pela PUC/SP, doutoranda pela UNIP/SP. Atua como executiva e consultora de organizações.
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MÔNICA BRANDÃO: Engenheira, especialista em finanças. Mestre em Administração pela PUC/MINAS. Atua como executiva, conselheira de organizações e professora
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