Novembro trouxe uma bela imagem nos principais jornais do país: chefes de estado de vários países tendo ao fundo o Pão de Açúcar num dia iluminado. Eram os oitenta e tantos signatários de uma aliança internacional contra a fome, países e organizações multilaterais, uma conquista da diplomacia brasileira. A foto, se não vale mil palavras, vale o suficiente para compensar as frustrações em temas muito difíceis em que o Brasil buscava algum protagonismo: o clima, as guerras e o tão sonhado assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

A declaração conjunta ao final do G20 foi gasosa, como costumam ser esses documentos, de nenhuma importância prática, e gerou um tanto de noticiário sobre as divergências adverbiais no seu texto. Mas a foto foi espetacular, e dispensava legendas e explicações. Foi o melhor resultado da presidência brasileira do G20. E foi o que tivemos de melhor nesse mês difícil, que terminou com um pacote revelador, muito mal-recebido, talvez um dos grandes fiascos de política econômica nos últimos anos, um incidente cujas consequências são difíceis de se vislumbrar por inteiro nesse momento. “Quebrei o estado, mas fui reeleito”

Tudo começa com o diagnóstico, ou com uma ideia um tanto romanceada sobre o estado da economia. O governo acha que a economia vai muito bem. Os sinais parecem, de fato, positivos, o PIB do terceiro trimestre veio forte, mas há sutilezas. Os números do mercado de trabalho sugerem o “pleno emprego”, e o crescimento do PIB, ainda que baixo (na faixa entre 2% e 3%, chegando a 4% em algumas comparações escolhidas), tem sido melhor que a encomenda. Circulam teorias otimistas sobre o PIB potencial, que estaria sendo vítima recorrente de subestimativa, talvez por má vontade dos analistas. Círculos governistas repetem-se, dizendo que “o mercado errou” nesse tópico, várias vezes seguidas, quando não é o próprio presidente da República.

Mas o fato é que o aquecimento do mercado de trabalho e de atividade econômica pode ser simplesmente febre.

Não é impossível que o PIB cresça mais que o potencial. É mais tenso, pois o sistema fica estressado, quando se pisa fundo no acelerador e no freio ao mesmo tempo, o que tende a se expressar mais habitualmente em inflação, e em importações, mas pode explodir em tensões financeiras na presença de uma fagulha. Na maior parte dos casos conhecidos de sobreaquecimento (essa é a linguagem habitual), é por excesso de demanda, e a expansão pode prosseguir por certo tempo, sem qualquer sinal de alerta, até que os problemas parecem vir de onde não se espera. Ao longo do caminho, as advertências de cautela vão sendo descontadas, desmoralizando o prognóstico e servindo para aguçar a propensão a correr riscos.

O Brasil vive uma expansão um tanto além do PIB potencial, e do “pleno emprego”, impulsionada por estímulos fiscais fortes, isto é, por gasto público financiado por aumento na dívida pública. Na primeira metade desta presidência, a dívida pública subirá de 72% para 84% do PIB, aproximadamente. Não é um ritmo sustentável, e evoca a máxima de Orestes Quércia, “quebrei o estado, mas fui reeleito”, uma observação clássica, mas feita bem depois de as coisas darem errado.

Pouca coisa se nota durante a caminhada, é o que se diz de todas as grandes crises financeiras, que parecem surgir de repente, sem aviso nem fanfarra, cada uma de um jeito. O fato é que não se entende muito bem como é possível haver pleno emprego com os juros onde estão, senão em um extremo de crowding out talvez ainda não catalogado.

O problema brasileiro

O arcabouço fiscal não é como o Teto de Gastos, ou seja, não é impeditivo, mas indicativo. É quase que apenas uma meta, com diversas possibilidades de contorno. Muita coisa fica fora do limite do arcabouço, como explica o economista Marcos Mendes, em detalhes exaustivos. E quando vai se tentando criar gatilhos para o arcabouço ele vai ficando parecido com o falecido Teto de Gastos, porém sem os mesmos poderes.

Uma expansão fiscal financiada por aumento de dívida pública em grande escala cria uma situação de crowding out de livro texto, com pressão sobre a taxa de juros, sobre o câmbio e, afinal, sobre a inflação. O problema brasileiro parece ser um hiper-crowding out. Os cálculos para o juro neutro ficam cada vez mais impressionantes, bem como as expectativas de inflação cada vez mais desancoradas, isso tudo sugerindo que o Banco Central do Brasil terá de subir a SELIC mais agressivamente do que se imaginava. Ainda mais juro para ainda mais aquecimento. Isso não parece saudável. O paciente está febril, acima do peso e cada vez mais rebelde na sua alimentação.

O mês de novembro parecia terminar mal, mas estava em preparação o pacote que pretendia trazer a correção de rumos. Desde algum tempo, as circunstâncias apontavam com muita clareza a necessidade de ajuste fiscal, mas, numa primeira avaliação, o governo deu todas as indicações de que pretendia restaurar o equilíbrio fiscal pelo lado da receita. Afinal, é um governo de esquerda, que mal parece controlar sua ansiedade para começar a temporada de conversas sobre tributação progressiva da renda. Mas não era realista.

É claro que é mais simpático apelar aos impostos sobre os “super-ricos” que se abraçar às “maldades” inevitáveis nos ajustes pelo lado da despesa. Mas não é prático nem viável. Repetidamente se discutiu a lista de gastos tributários e renúncias fiscais, bem como os números alucinantes do Sindifisco para “privilégios”, até que o governo admitiu que não é viável pretender que o ajuste se faça unicamente pelo lado da receita. Ainda vai vir alguma novidade pelo lado da receita, mas todos em Brasília sabem que essa conversa é muito difícil.

Seria ótimo (do ângulo político) que a adesão à responsabilidade fiscal pudesse ser feita com um aumento na progressividade da tributação, idealmente sem aumento global de carga, e com aumentos das receitas tributárias decorrentes de maior atividade econômica. Seria fácil e politicamente funcional. Só que não existe essa alternativa. Não há saída fácil para o problema fiscal. Na verdade, ficou evidente entre técnicos que a inconsistência entre as políticas monetária e fiscal, da qual resulta o juro alto, não poderá ser resolvida sem um pacote de redução de despesa.

Esse era um consenso entre os especialistas, mas que não incluía o presidente da República. Era um trabalho para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que já tinha conduzido muito bem a confirmação do nome de Gabriel Galípolo para a presidência do Banco Central. O presidente da República, inclusive, já havia baixado as armas de sua cruzada pessoal contra Roberto Campos Neto e mesmo contra os juros altos, admitindo que, se Galípolo achava mesmo necessário manter as coisas como estavam, e mesmo subir um bocado a mais, ele se conformava. Era um grande avanço.

O passo lógico a seguir era o de acolher o diagnóstico pelo qual era preciso fazer um pacote pelo lado da despesa. Os ministérios econômicos já vinham trabalhando há tempos nesse tema, mas o trânsito no interior do governo era complexo, e o problema não estava apenas no presidente Lula.

O ministro Haddad não quis se expor ao apresentar uma proposta dele, ou da área econômica, para, em seguida, vê-la atacada frontalmente por outros ministros ou pela liderança petista. Por isso, o assunto foi levado ao presidente da República para que escolhesse entre alternativas. Foi prudente para o ministro renunciar à autoria do pacote, trazendo o ônus e o bônus para o presidente Lula. Mas é claro que há custos nessa alternativa.

Nem sempre os presidentes gostam de ver um problema depositado na soleira da sua porta. É muito melhor quando o ministro especialmente encarregado do assunto traz uma solução, e boa. É ruim quando não vem desse jeito.

Para o ministro, pareceu muito prudente deslocar a escolha para cima, pois havia enorme potencial de fogo amigo. Ao final, o fogo amigo não veio porque o mercado financeiro detestou o pacote, razão suficiente para a liderança petista nutrir o sentimento exatamente oposto. Entretanto, o resultado político para Haddad foi acentuar a sensação de que ele é mais assessor que ministro. Mas tudo fica dependente da qualidade do pacote.

O presidente da República, de seu lado, percebendo o potencial de polêmica, resolveu abrir consultas junto a seus ministros, e alguns, que logo perceberam que a tesoura vinha em sua direção, passaram a se pronunciar publicamente sobre o assunto. O ministro de Trabalho, por exemplo, declarou que não haveria cortes em gastos da sua pasta pois sequer tinha sido chamado para conversar, meio que ameaçando se demitir se algo ocorresse nos assuntos seus que não tivesse sido expressamente negociado. Outros ministros se manifestaram de forma semelhante, como o da Previdência, e alguns foram chamados para conversar, inclusive os militares, no pressuposto de que todos teriam que contribuir.

Seguiu-se uma pequena encenação de “pacto social”, como se fora uma competição entre prioridades, ou uma negociação com a sociedade civil e não entre subordinados do presidente da República. E depois de muita conversa, os ministros todos permaneceram como estavam (os sociais, os da casa, os do centrão e os militares): não houve nenhuma reforma ministerial, tampouco cortes relevantes, nem em ministros, nem em despesas. A solução política para um pacote de cortes de gastos foi trabalhar com cortes que não incomodam ninguém no governo, como descrito logo abaixo, cortes mais virtuais do que reais.

Quanto mais pompa, pior

O pacote foi apresentado com a pompa dos grandes anúncios na noite de quinta-feira, dia 28/11, com um pronunciamento do ministro da Fazenda em rede nacional de televisão, seguido de uma coletiva na sexta-feira, dia 29/11, pela manhã. Era o sinal inequívoco da grandeza da iniciativa, talvez aí uma indicação de que Fernando Haddad estava recebendo o tratamento de presidenciável. Mas não foi uma boa ideia. Parecia que a máquina de comunicação do governo estava em dessintonia com a substância da coisa.

Um pacote pífio requer um anúncio discreto, livre de pirotecnia. Pelo mesmo raciocínio, quando se trata de pacote mal construído, quanto mais pompa, pior.

A repercussão foi péssima, e não foi unicamente um problema de comunicação ou porque o pacote era composto de “maldades”. Ou mesmo porque não devia ter falado na isenção de IRPF para as rendas menores que R$5 mil. Na substância, o pacote é um conjunto vazio ao revelar muito claramente a extensão do desconforto do governo com a ideia de cortar gastos. É um desconforto profundo e compreensível de um governo de esquerda diante do imperativo de reduzir gasto, ou seja, com a redução do tamanho do Estado.

A renúncia de IRPF só chamou tanta atenção porque era como a cereja no bolo: o pacote de redução de gastos não apenas não tem muita carga como traz para enfeitar um aumento de despesa. Como pode ser?

Muitas vezes no passado se exaltou o pragmatismo do presidente da República ao contrariar teses históricas de seu partido. Desta vez, todavia, não houve nada disso. Trata-se de pacote de “revisão de gastos” de inspiração petista, a julgar pelo apoio de lideranças como Lindenberg Farias e José Dirceu, ambos exaltando as medidas tributárias progressistas, que, na verdade, não fazem parte do pacote.
De um ângulo mais operacional, o desconforto com a ideia de cortes de gastos se observa em vários aspectos do pacote: no formato, na filosofia, na natureza exata das medidas e, é claro, na estratégia de comunicação.

No formato, para começar, não há íntegras dos textos. Um pacote sem as medidas. O Diário Oficial não mente. Onde estão as íntegras? Depois de várias semanas de conversas intensas, nas quais muitas possibilidades foram debatidas, como é possível que não haja texto? Seria um lapso freudiano?

Houve um pronunciamento do ministro em cadeia nacional de televisão, sobre o qual circularam o texto do discurso, duas páginas vagas, e um power point. Esse foi o pacote.
O anúncio (power point) aludiu a duas ferramentas principais, uma PEC e uma proposta de lei complementar, duas fórmulas de longa tramitação e nenhuma medida provisória, isto é, nada com o requisito constitucional de “urgência e relevância”.

Claro que os textos apareceram nos dias que se seguiram, uma PEC e dois projetos de lei complementar assinados pelo deputado José Guimarães (PT-CE), líder do governo na Cãmara dos Deputados. Mas no primeiro momento, causou espécie a inovação representada por um pacote sem texto. Como se o governo quisesse trazer “temas” ou “teses” de forma mais aberta, deixando para os relatores das matérias a autoria do texto principal.

Sem prejuízo dessa nova técnica de encaminhamento parlamentar, na página 21 do power point oficial do pacote há números ano a ano, de 2025 a 2030, para os impactos das medidas, ainda que não sejam especificadas. Numa avaliação mais realista, fica muito claro que o governo não resolveu o seu desconforto com a ideia de cortar gasto. Entende-se a objeção ideológica e conceitual, bem como a contrariedade do presidente Lula.

As circunstâncias costumam contrariar os desejos dos presidentes. Às vezes, são crises externas, ou são legítimas heranças malditas, que é preciso endereçar tomando medidas ditas impopulares, medidas que qualquer presidente preferiria não ter que tomar. Os bons presidentes são os que tomam as decisões corretas nesses momentos.

Nesse momento em particular, a ação recomendada pela boa técnica era um pacote de redução de gastos, e o presidente Lula não gosta de cortes de gastos. Sempre que se fala nesse assunto, ele se esforça em dizer que os gastos não são gastos, mas investimentos. É puro negacionismo fiscal, até agora sem qualquer consequência..

Mas como se organiza um pacote fiscal nessas condições?

Os “cortes” precisam atender a certas condições para serem aceitos no pacote. Precisam ser o resultado do consenso dos ministros e precisam soar como programas do governo, ou seja, devem ser cortes que se pareçam com aumentos em gastos.

Deve ser claro que um pacote de cortes que atendem simultaneamente a essas exigências é um conjunto vazio. Esta é razão para o fiasco. O pacote é vazio de substância pois é inexistente a vontade do presidente Lula e do governo em cortar despesa. Simples assim. É uma opção legítima do presidente da República, isso não se discute. Mas as consequências vêm depois, como reza a boa sabedoria política. O câmbio foi a R$6,00 e muitos petistas reclamaram de o Banco Central não fazer nada em oposição a esta especulação.

Jabuti na comunicação

No nível mais conceitual, o esforço de se fazer cortes que não eram cortes resultou em algumas variantes criativas: (i) cortar aumentos que ainda não aconteceram (como, por exemplo, os aumentos futuros do salário-mínimo); e (ii) remanejar despesas que já iam acontecer de qualquer jeito para que atendam requisitos que requereriam despesa nova (por exemplo, no item FUNDEB).

Junte-se a isso: (iii) um pente fino sobre programas sociais, o que se transforma em uma medida de compliance destinada a cortar despesas decorrentes de fraude; e a (iv) velha conhecida desvinculação (DRU), tão combatida no passado, agora uma escolha do presidente Lula.

Sempre há algum ajuste menor, que é um corte de verdade, como resultará, por exemplo, da redução da idade mínima da aposentadoria dos militares, e de dispositivos que pegam carona na PEC e nos projetos de lei complementar que compõem o pacote. Mas são valores pequenos, nada que chegue perto dos 70 bilhões falados para 2025/2026, e que foram colocados em dúvida.

Não se perca de vista que, mesmo que fossem 70 bilhões de verdade, estamos falando de um orçamento de 5 trilhões (somando as PLOAs de 2024 e 2025). Ou seja, o governo não foi capaz de identificar nem 1,5% de corte na despesa pública. É claro que isso foi muito claramente percebido como um fracasso.

É nada mais que um agravante a mistura, no anúncio do pacote, que o governo tenciona ampliar a faixa de isenção de IRPF para os rendimentos menores que R$ 5 mil. Diz-se que a inclusão do tema no anúncio foi pela vontade expressa do próprio presidente Lula. Não é um acidente que as lideranças petistas tenham saído em defesa do pacote exatamente nesse tópico que, como já observado, e bem lembrado por lideranças como Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, não fazem parte desse pacote.

O governo quer muito discutir o que tem designado sobre a “reforma da renda”, um pacote tributário que se quer definir como “reforma” a fim de absorver um tanto do goodwill que se viu na reforma tributária (do consumo). As chances da “reforma da renda” já não eram boas antes desse pacote, talvez ficado ainda menores. Mas será impossível ignorar a sombra dessa matéria enquanto se discute o pacote dos cortes.

A “reforma da renda” está no futuro, e o governo parece calcular o momento de lançar essa tese da isenção para a “classe média”, promessa de campanha do presidente Lula, no pressuposto que os “super ricos” vão pagar essa conta.

Muitos apontaram aí um erro do governo em misturar aumento de despesa (redução de imposto) no pacote de redução de despesa. Outros falaram em antecipar 2026. Mas está tudo misturado mesmo.

Curiosamente, o assunto da isenção foi o que mais atraiu a atenção da imprensa. Mais curioso é que não há nada de extravagante em que jabuti na comunicação seja mais importante que a substância do pacote, quando o pacote é confuso na substância. O pacote de cortes não traz cortes, talvez refletindo a sabedoria pela qual gasto não é gasto. Talvez exatamente por isso, o pacote terá (provavelmente) um percurso fulminante e uma aprovação rapidíssima no Congresso. O que há para opor ou a agregar a um pacote de cortes que não traz cortes?

Por: Gustavo Franco, sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil.

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