Fernando Thompson

Colunista de Plurale – Mestre em Administração e consultor de imagem

O preço da liberdade é a eterna vigilância. Essa frase muitas vezes é atribuída, erradamente, ao ex-presidente americano Thomas Jefferson ((1801-1809), mas ela jamais foi encontrada nos seus escritos. A mais antiga fonte estabelecida que contém uma sentença bastante semelhante é um discurso de John Philpot Curran, pronunciado em 1790 e publicado em “ Speeches on the late very interesting State trials” (1808).

O século XXI é marcado por um mundo repleto de câmeras de segurança, onde a identificação facial já uma realidade e o controle de nossas ações é on line. Esse cenário lembra o romance “1984”, escrito em 1949 por George Orwell. O romance é ambientado na “Pista de Pouso Número 1” (anteriormente conhecida como Grã-Bretanha), uma província do superestado da Oceania, em um mundo de guerra perpétua, vigilância governamental onipresente e manipulação pública e histórica. Os habitantes deste superestado são controlados por um regime político totalitário eufemisticamente chamado de “Socialismo Inglês“; onde o superestado está sob o controle da elite privilegiada do “Partido Interno”, um partido e um governo que persegue o individualismo e a liberdade de expressão como “crime de pensamento“, que é aplicado pela “Polícia do Pensamento”.

Esse enredo te lembrou algo? Donald Trump? Facebook? Twitter? Pois saiba que no dia do lançamento de “1984”, a população mundial girava em torno de 2,5 bilhões de almas. Nos tempos atuais, só Facebook “vigia e controla hábitos de consumo” de mais de 3 bilhões de pessoas, num mundo que tem cerca de 7 bilhões de habitantes. O que poucos se dão conta é que todos os seus passos (literalmente) estão sendo vigiados pelas chamadas Big Techs, as grandes empresas de tecnologia (Alphabet, Apple, Google, Amazon e Twitter). E como elas fazem isso? Simples, pelo seu celular e pelo seu computador, onde elas acompanham cada busca que você faz na internet; cada local que você visita, como lojas e restaurantes; ou em um simples like dado em um post de um amigo nas suas redes pessoais.

E o que está em jogo é dinheiro. Muitos bilhões de dólares. Veja os dois gráficos abaixo públicos, publicados pelo site https://www.visualcapitalist.com/. Veja que nos últimos 40 anos, o reinado da TV como o maior veículo de comerciais do mundo está ameaçado pelas empresas de busca (leia-se Google) e de redes sociais (leia-se Facebook e Twitter).

Figura 1: Gastos Globais com Anúncios (1980/2020)

Fonte: visualcapitalist.com

Figura 2: Gastos Globais com Anúncios (2010/2022)

Fonte: visualcapitalist.com

Onde há dinheiro, há poder. Muito poder. Isso ficou no escândalo que ficou conhecido como Cambridge Analytica (CA). A CA foi uma empresa privada que combinava mineração e análise de dados com comunicação estratégica para o processo eleitoral. Foi criada em 2013; e já em 2014 participou de 44 campanhas políticas. Em 2016, a empresa fechou os seus mais importantes e ruidosos contratos: pôs seus algoritmos a serviço da campanha presidencial de Donald Trump, e também para a do Brexit, visando a saída do Reino Unido da União Europeia.

O papel da CA e o impacto sobre essas campanhas têm sido contestados, virou caso de justiça e é objeto de várias investigações criminais nos Estados Unidos e no Reino Unido. Esse escândalo gerou as primeiras fortes críticas ao uso dos algoritmos das Big Techs, alimentados por seus usuários de forma voluntária. Essa crise evoluiu, chegou ao Brasil; está no Supremo Tribunal Federal (STF) uma investigação do uso indevido das redes sociais, em especial o WhatsApp (parte do grupo Facebook), que teriam influenciado as eleições de 2018. É o chamado inquérito das Fake News e está sob comando do ministro Alexandre de Moraes.

A mais recente crise do setor, foi a decisão de grandes Big Techs de cancelar as contas do ainda presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sob acusação de que ele estaria usando essas contas para promover mensagens de violência. Segundo uma pesquisa realizada pela agência de comunicação Burson Cohn & Wolfe (BCW), o presidente Trump é o líder mundial mais seguido no Twitter (55 milhões de seguidores na sua conta pessoal), superando o Papa Francisco (26 milhões). O fato é que, ao longo dos últimos anos, essas mesmas empresas se recusavam a cancelar contas, sob o argumento de que isso seria um ato de censura, mudaram de posição. Vejamos dois casos.

  1. Em 20/05/2020, Mark Zuckerberg deu a seguinte declaração, diante de post mentirosos de Trump, sobre mais um massacre: “Não vamos tomar nenhuma providência a respeito de posts do Trump sobre os tiros em Minnesota”:
  1. Em 27/05/2020, o CEO do Twitter, Jack Dorsey, deu uma entrevista dizendo por que não iria retirar do ar um posts de Trump com Fake News contra Joe Sacarborough: “…eles faze parte do que é dito por aí” (tradução livre).

Na semana passada, milhões de brasileiros começamos a receber mensagens em nossos celulares, que vêm da direção do grupo de Mark Zuckerberg: temos até fevereiro para concordar ou não com as novas regras de uso do app, que entre outras novidades, vai usar nossas informações de navegação do “Zap” com o FB, outra empresa do grupo de Zuckerberg. E por que isso? A resposta é simples: mais dinheiro. A gigante americana quer usar todo o que sabe de seus usuários para gerar estratégias de uso e consumo, que serão oferecidas a empresas. Ou seja, ela vai usar “di grátis” tudo o que você faz, vê, compra, consume ou vende, para criar o mais potente banco de informações jamais criado. Essas mudanças do FB estão na mira do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que já estuda medidas judiciais contra a gigante digital, e defender os usuários.

O que Zuckerberg quer nem o governo brasileiro tem. Temos leis que protegem nossas informações pessoas contra abusos de governantes. É isso que chamamos de ‘Estado de Direito”, onde os direitos do cidadão não podem ser desrespeitados.

Diante dos abusos da Big Techs, chegou a hora de criamos uma legislação que nos traga o “Estado digital de direito”, onde nossas informações e hábitos digitais pertençam aos cidadãos e não aos executivos do Vale do Sílico (região dos Estados Unidos que foi o celeiro das Big Techs). Pessoalmente, penso que o novo arcabouço legal deve ter quatro pilares:

  1. Quebrar o modelo de negócios das Big Techs – Já há um debate global no mundo sobre esse ponto. Nos Estados Unidos, já há propostas onde a divisão em partes dessas empresas. Na Europa, na Austrália tanto Google como Facebook já se preparam para uma batalha de bilhões de dólares. O ponto central é que estas gigantes teriam adotado práticas anticoncorrenciais, o que eliminou possíveis competidores e prejudicou os clientes;
  2. Responsabilizar os gestores de campanhas digitais- É importante definir direitos e deveres dos executivos (em especial os de órgãos públicos), que definem campanhas digitais. É importante quebrar o elo que permite investir em sites e influenciadores que propagam mensagens falsas, e que incitam o ódio e a violência;
  3. Capacitar os Órgãos de controle – Com o avanço digital, fica difícil para os Tribunais de Conta federal, estaduais e municipais (TCU, TCEs e TCMs); bem como áreas de compliance de empresas privadas fiscalizarem atos de gestão de gestores digitais. Por isso, é importante que os servidores desses órgãos.
  4. Maior celeridade por parte da Justiça – Em tempos de velocidade digital, não podemos ter uma Justiça levar anos para julgar uma disputa que envolve usuários e Big Techs. Reputações estão assassinadas diariamente e para evitar isso, precisamos de mais leis melhores e específicas para combate as “milícias digitais”, que tanto mal têm feito a nós.

Diante de tudo o que discutimos até aqui, leitor, fica claro que as vantagens digitais da vida moderna não podem ser, ao mesmo tempo, ameaças à milenar democracia- forjada há 3000 anos, no seio da sociedade grega. Na nova ordem mundial, as Ágoras digitais (a versão moderna das assembleias gregas em praças públicas) não podem se transformar em um Coliseu pós-moderno, onde reputações são esquartejadas em nome do lucro ou de projetos políticos.