Por: José Garcez Ghirardi, FGV Direito SP

“Nenhum homem é uma ilha isolada, completo em si mesmo; cada ser humano é um pedaço do continente, uma parte do todo. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa será menor, da mesma forma como se fosse um promontório, a casa de seu amigo ou a sua. A morte de qualquer homem me diminui, porque faço parte da humanidade. E, por isso, nunca mandes saber por quem os sinos dobram: eles dobram por ti” [1]

O excerto acima, extraído das Devotions Upon Emergent Occasions (1624), popularizou-se junto ao público contemporâneo quando Ernest Hewingway dele se serviu para dar título a um de seus romances mais celebrados (Por quem os sinos dobram, 1940).

Nessa obra poderosa, Hemingway oferece uma narrativa dos horrores da guerra civil espanhola, da agonia diante do massacre indiscriminado, brutal e estúpido de seres humanos, da anquiliação gratuita de cidades e vilarejos inteiros – sempre justificados pelo discurso vazio da defesa de valores elevados – que traz ecos do desalento  de Donne frente a seu próprio tempo. Tendo igualmente experimentado o mal absoluto que é a guerra, Donne expressou no extraordinariamente belo An Anatomy of the World (1611)  sua descrença profunda no projeto de sociedade em que se via inserido “‘esse mundo se esfacelou até seus átomos; tudo está em pedaços, toda a coerência desapareceu”.[2]

A apropriação que Hemingway faz do texto de Donne lança luz, assim, sobre a dimensão atemporal das Devotions.A descrição da carnificina quotidiana nos campos de batalha espanhóis encapsula uma reflexão profunda sobre a morte como elemento que nos irmana em sua inexorabilidade e seu mistério: “a morte de qualquer ser humano me torna menor”.

A dimensão histórica dessa proposição de Donne, conquanto menos conhecida do público em geral, é absolutamente fascinante e dialoga, de perto, com questões que hoje nos interpelam – do conflito entre Rússia e Ucrânia à disputa aparentemente sem fim no Oriente Médio.

Donne viveu em uma Inglaterra dliacerada pelos antagonismos políticos, religiosos e sociais. Nascido em 1572, ele viveu de perto o conflito intenso e violento entre a Inglaterra de Elizabeth I (que reinou de 1588 a 1603) e a Espanha de Felipe II (reinou entre 1580 e 1598). Oriundo de uma família católica (e, conforme se especula, sendo ele mesmo católico), Donne sentiu na pele o perigo de ser punido por suas convicções: para muitos ingleses da época ser católico ou papista, como se dizia, significava ser necessariamente um traidor da pátria (porque presumivelmente simpatizante da católica Espanha), alguém que conspirava contra o bem comum e que merecia ser vigiado, punido e, eventualmente, eliminado.

Donne percebia com clareza a injustiça dessa associação direta, a obtusidade dessa equiparação automática. Muitas possibilidades de emprego e de ascensão social lhe foram negadas por causa dessa suspeita. Ela plausivelmente influenciou o desfecho de um evento decisivo na vida do jovem poeta: tendo se apaixonado por Ann More, Donne com ela se casou às escondidas, contra a vontade do pai da jovem, homem de grande influência na Corte. Furioso, o sogro não apenas determinou a prisão de Donne como ameçou comretaliações qualquer nobre que, depois de sua soltura, lhe oferecesse ajuda ou emprego.

A carreira do jovem Donne parecia acabada antes mesmo de começar, como ele mesmo manifestou – com agudeza habitual – na inscrição que gravou na janela de seu cárcere: “John Donne, Ann Donne, Undone”.

O sofrimento desse longo período foi tão profundo, a percepção da rejeição social tão intensa, que Donne chegou a escrever um tratado em que defendia a possibilidade de que o suicídio, em algumas condições, não fosse pecado (Biathanatos, 1608).

Por conta desse doloroso percurso biográfico, John Donne buscou sempre indicar, ao longo de sua vida, que a  sanha de condenarmos os outros por causa de sua origem ou dos afetos que escolhem viver é uma das formas mais abjetas de injustiça. A sofisticação de sua poesia sugere que os seres humanos são muito mais complexos do que supõem as leituras tacanhas que tantas vezes caracterizam o senso-comum.

Rejeitando os rótulos fáceis e odiosos baseados na superficialidade da percepção social, Donne lançava seu olhar crítico às bases mesmas das crenças que estruturavam a ideologia dominante. Sua aproximação entre o erotismo e o misticismo (antecipando um argumento a que George Bataille daria forma filosófica) é responsável por um de seus poemas mais fascinantes: To his mistress going to bed.

O texto, traduzido por Augusto de Campos e musicado por Péricles Cavalcanti, faz parte do repertório de Caetano Veloso (sob o título Elegia) e embaralha, com elegância e inteligência únicas, as fronteiras entre o sagrado e o profano, o corpo e o espírito, o eu e o outro, em um exercício cuja sofisticação e nuance São o oposto das certezas absolutas que informavam o discurso de seus detratores.

Escrita entre o fim do século XVI e o início do século XVII, a complexidade encantadora da obra de John Donne serve de advertência poderosa contra a tendência de hipersimplificação que castiga nosso tempo. Ler seus textos é lembrar de nosso caráter sempre contraditório e multifacetado e celebrar que sejamos, cada uma de nós, “a little world made cunningly”(um pequeno mundo criado com engenho).    


[1] No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main. If a clod be washed away by the sea, Europe is the less, as well as if a promontory were, as well as if a manor of thy friend’s or of thine own were. Any man’s death diminishes me, because I am involved in mankind. And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.

[2] [world]is crumbled out again to his atomies.’Tis all in pieces, all coherence gone,

O post A morte de qualquer ser humano me torna menor: A poesia de John Donne como elogio da complexidade apareceu primeiro em Rio Bravo Investimentos.

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