Meu primeiro contato com a Argentina ocorreu em fevereiro de 1954, quando, aos 13 anos de idade, viajei com meus pais e irmãos de Lisboa para o Rio, após longa estadia na Europa.

Os portenhos entram nessa história porque o navio de passageiros no qual viemos chamava-se 17 de octubre, em alusão à data máxima do peronismo, cujo líder, Juan Domingo Perón, exercia poder total sobre o país.

Quatro moedas circulavam a bordo, dólar, cruzeiro, pesos uruguaio e argentino, sendo que esta última só perdia em poder aquisitivo para o dólar.

Pudera!

A Argentina ainda possuía grande volume de reservas cambiais, resultado de seu enorme superávit comercial acumulado durante a Segunda Guerra Mundial, época na qual exportava carne e grãos para os dois lados em conflito.

Só fui conhecer a Argentina seis anos mais tarde, em 1960, quando, em companhia de meu irmão, fomos, de avião, esquiar em San Carlo de Bariloche, na Patagônia. No caminho, passamos alguns dias em Montevidéu e Buenos Aires.

Nessa ocasião, os pesos, argentino e uruguaio, e o cruzeiro brasileiro tinham mais ou menos a mesma força. Só que o argentino estava em decadência, o uruguaio em ascensão e o cruzeiro estável.

Embora no Brasil o dólar praticamente não circulasse, no Uruguai e na Argentina era moeda corrente, quem sabe já pressagiando os momentos difíceis que os dois países hermanos iriam enfrentar nas décadas que se seguiriam.

Depois disso, voltei à Argentina algumas vezes, apenas para assistir corridas de Fórmula 1, até que eles saíssem para sempre do “circo”.

Mas é lógico que, como operador, analista e cronista do mercado financeiro, nunca deixei de acompanhar o que se passava por lá.

Durante algum tempo, tudo que acontecia no câmbio argentino se refletia aqui. E vice-versa. Daí o axioma “Eu sou você amanhã”, inspirado no comercial de uma marca de vodca.

Agora, estudando o longo prazo, medido em décadas e até em séculos, a Argentina é um país em franca decadência, enquanto o Brasil oscila entre bons e maus períodos.

No final do século 19, mais precisamente em 1895 e 1896, os argentinos detinham o troféu de maior renda per capita do planeta. Nessa época, principalmente na Europa, chamar alguém de argentino era chamá-lo de ricaço, mesmo que a pessoa em questão fosse britânica ou holandesa.

Com um solo riquíssimo, altamente propício à pecuária e à agricultura, os argentinos achavam que sua riqueza era um direito divino e que seriam prósperos para sempre.

Durante um pequeno espaço de tempo, justamente na Segunda Guerra e seu pós, Juan Perón e sua mulher, Evita (la reina de los descamisados) deram aos argentinos a ilusão de que os tempos de riqueza haviam retornado.

O curioso é que esse sentimento volta de vez em quando. Tanto é assim que existem peronistas até hoje, embora seja difícil definir o que significa isso em termos de ideologia.

Agora surgiu na Argentina um político excêntrico, Javier Milei. admirador de Donald Trump e Jair Bolsonaro e que se define como anarcocapitalista.

Excentricidade é o que não falta na política brasileira. Basta assistir aos programas eleitorais na TV a cada dois anos.

Acontece que Milei venceu as primárias de domingo passado, com 30 por cento dos votos, vitória essa que o transforma em favorito para as eleições presidenciais em dois turnos que se realizarão em 22 de outubro e 19 de novembro, sendo que lá para um candidato se eleger no primeiro turno basta que obtenha 40% dos votos (e não 50% mais um como aqui) ou uma vantagem de 10 pontos percentuais sobre a soma dos demais candidatos.

As duas promessas mais controvertidas de Javier Milei são a de extinguir o peso e o Banco Central. O dólar seria então a moeda circulante.

É verdade que os argentinos estão muito mais acostumados a lidar com dólar do que os brasileiros. Imóveis são comprados e alugados em dólares, assim como a compra e venda de automóveis ou bens de consumo duráveis de maior valor.

Ocorre que o país não tem dólares suficientes para cobrir o meio circulante. Suas reservas cambiais estão a ponto de se esgotar.

A Argentina já tentou algo parecido, durante o governo de Carlos Saúl Menem. A moeda não foi extinta, tal como Milei deseja agora, mas foi definida uma paridade de 1 por 1 entre o peso e o dólar.

Ou seja, uma pessoa podia pagar um almoço com uma nota de cem pesos e exigir o troco em dólares.

Como, em sua dívida interna, o Banco Central Argentino remunerava com uma taxa maior os títulos fixados em peso, quem acreditasse no plano podia ganhar um bom dinheiro, já que no vencimento poderia retornar aos dólares.

Tinha tudo para dar errado. E deu. Hoje (estou escrevendo este texto no final da tarde de quarta-feira, 16 de agosto), um dólar vale 365 pesos, na cotação oficial. No mercado paralelo, passa dos 780.

Como se esses males per se não bastassem, é preciso lembrar que a Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil (atrás apenas da China e dos Estados Unidos).

Essas eleições presidenciais nos pampas são muito importantes para nós.

De malucos, já bastam os daqui.

Um ótimo fim de semana para todos.

Ivan Sant’Anna

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