Quando, em 1958, eu me apresentei no aeroclube do Carlos Prates, em Belo Horizonte, para minha primeira aula de aviação, uma das coisas que o instrutor fez foi me apresentar o avião, um monomotor Paulistinha Cap-4, prefixo PP-RVI.

Ele começou pelo lado de fora da aeronave, se é que merece esse nome um teco-teco feito de lona revestindo um “esqueleto” de tubos de aço e equipado com um motor Lycoming de 90 HP.

No bordo de ataque (parte frontal) de cada uma das duas asas havia um pequeno tubo por cujo orifício passava o vento.

Isso aqui é para medir a velocidade do ar”, ele explicou. “Chama-se tubo de Pitot”, concluiu.

Agora explico eu: a velocidade dos aviões não é medida em relação ao solo, mas em relação à massa de ar através da qual eles se deslocam. Se ventos fortíssimos vêm de frente nessa mesma velocidade, o avião não perde a sustentação mas fica parado em relação ao terreno abaixo.

Isso é raríssimo de acontecer, mas acontece.

Certa vez um Boeing 707 da Pan Am, voando sobre a cidade de Valparaiso, no Chile, encarou um jet stream (ventos de altíssima intensidade que ocorrem em grandes altitudes) e ficou parado sobre a cidade.

Desde a época daquele meu primeiro voo e os dias de hoje já se passaram 65 anos. E a aviação evoluiu uma barbaridade.

Hoje pilotos da Força Aérea (e não é só a do Brasil) fazem treinamento básico em monomotores turboélice Embraer EMB-314 Super Tucano, cuja velocidade de cruzeiro é de 520 km/h. Os da RAF (Royal Air Force) usam o mesmo tipo de aeronave.

Um Boeing 787 Dreamliner (state-of-the-art da aviação comercial) voa mais de 14 mil quilômetros sem escalas levando a bordo até 420 passageiros. E o tubo de Pitot continua lá, na lateral do cockpit de todos eles.

Por causa das temperaturas nas grandes altitudes (chegam a 50 graus Celsius negativos), eles dispõem de sistemas de aquecimento para não congelar e impedir (total ou parcialmente) o fluxo de ar que marca a velocidade aerodinâmica dos aviões.

Certa ocasião, um Boeing 757 da empresa aérea turca Birgenair pernoitou em um aeroporto da República Dominicana.

Só que os encarregados da manutenção da aeronave se esqueceram de pôr uma capa de proteção para que não entrasse poeira nem outro tipo de detrito nos Pitots.

Calço nas rodas e capas nos Pitots são funções essenciais quando os aviões estão estacionados nos pátios dos aeroportos.

Resultado: vespas fizeram ninhos no interior de ambos os Pitots do Boeing, diminuindo seu calibre e, portanto, fazendo que, quando estivessem em voo, fornecessem indicações erradas da velocidade do ar aos pilotos.

Desorientados, os aviadores deixaram que o jato estolasse (perdesse a sustentação) e se projetasse contra o mar do Caribe causando a morte de todos os seus 189 ocupantes (176 passageiros e 13 tripulantes).

Esta semana a Justiça francesa eximiu a Air France e a Airbus de qualquer responsabilidade pela queda do voo 447 ocorrida em 1º de junho de 2009 nas águas do Atlântico Sul, num voo entre o Rio e Paris.

Se quisermos simplificar, e o desastre nada teve de simples, poderíamos dizer que o grande culpado foi ele: o Pitot, que congelou e impediu a passagem correta do ar por seu interior e, por conseguinte, leitura precisa da velocidade.

Só que a Air France sabia que os Pitots daquela série estavam com defeito. Tanto é assim que os vinha substituindo, transformando os voos em uma espécie de loteria.

A Airbus entregara as aeronaves à companhia aérea com os Pitots defeituosos.

Quanto aos pilotos, vamos lá: vejamos o que aconteceu:

Se o caro amigo leitor pegar um voo da British Airways, de São Paulo ou Rio de Janeiro para Londres, verá que são quatros aviadores: dois comandantes e dois copilotos.

Na decolagem, os comandantes pilotam a aeronave. Na aterrissagem em Londres, também.

Após os procedimentos de subida, um dos comandantes vai para o “sarcófago”, apelido que os pilotos dão às cabines de descanso equipadas com cama.

Em seu lugar, entra um dos copilotos.

Como o voo para Londres demora doze horas, decorridas seis, os comandantes trocam de posição. O que estava no sarcófago assume a poltrona da esquerda. O outro vai descansar na cama.

O mesmo acontece com os copilotos. Pouco antes de chegar ao destino, os comandantes voltam ao cockpit.

Na época do acidente, a Air France trabalhava com apenas um comandante e dois copilotos.

Aproximadamente três horas após a decolagem, quando o Airbus A330 sobrevoava o Atlântico Sul, ao norte do arquipélago de Fernando de Noronha, as medições dos Pitots, congelados, deram indicações erradas aos dois copilotos.

Com o avião perdendo altitude, o que dava para se constatar na leitura do altímetro, os copilotos puxaram os joysticks para trás com a intenção de evitar a queda, quando o procedimento certo é levá-los à frente para que a aeronave se recupere do estol.

Só que a justiça francesa achou que a Airbus (fabricante da aeronave) e a Air France (que treinou os pilotos) não tinham nenhuma responsabilidade no acidente.

Corporativismo! Patriotada! Vexame!


Ivan Sant’Anna

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