Tradicionalmente, o mercado financeiro tem uma predominância masculina. Os produtos e serviços oferecidos não foram criados considerando as necessidades e particularidades das mulheres, nem considerando o que elas desejam ou precisam. Mas já observamos os primeiros sinais de mudança. Os bancos têm procurado entender o que é preciso para bancarizar e prover serviços que agreguem valor e sejam mais adaptados para o público feminino, apesar de podemos afirmar que ainda estamos longe de uma relação financeira equitativa. Por isso, vamos analisar o caso particular da cessão de crédito.
Nos últimos dois anos, a taxa de bancarizados subiu para 70% da população brasileira, e muitas mulheres passaram a ter conta bancária e um cartão de crédito, mas ainda há uma grande “negligência” acerca do impacto das relações sociais de gênero nas finanças, especialmente para as mulheres. Podemos realmente afirmar que conhecemos o resultado das relações sociais de gênero na saúde financeira das mulheres? Precisamos perguntar, por exemplo, se os serviços extras do cartão de crédito são “ajustados” para cada perfil de cliente, inclusive para as mulheres!
O gap de Gênero em finanças é muito bem ilustrado pela cessão de crédito. O tema é de grande importância para a economia, uma vez que o crédito é um instrumento fundamental de acesso aos bens materiais, conforme defende Maurício Moreira Mendonça de Menezes (2006).
Sabemos que para conceder crédito, os bancos e instituições credoras avaliam o montante de crédito solicitado em relação à capacidade objetiva e subjetiva do tomador de credito devolver o crédito. O processo de avaliação envolve criar um Perfil do tomador de crédito e um Score de Risco, que é criado com base em dados objetivos e subjetivos acerca do solicitante. Para conceder o crédito avaliam-se elementos como a quantidade de recurso emprestado, a situação sócio-econômico-financeira do tomador do crédito, o histórico de inadimplemento, a aplicação dada aos recursos, a moeda, o indexador e o prazo da operação, a atividade econômica predominante, e indicadores subjetivos de que o solicitante é capaz de gerar recursos para pagar o empréstimo, além das garantias que oferece (BESSIS, 1998).
Aparentemente, homens e mulheres deveriam ter oportunidades iguais de crédito, o que não ocorre. Dados históricos indicam que há um gap de gênero nos modelos de concessão de crédito. Sabemos que mulheres recebem montantes de créditos menores e pagam taxas de juros mais altas por empréstimos do que os homens (há um relatório do Sebrae de 2017 e 2018 que mostra isso). Então, podemos inferir que os modelos de avaliação de crédito são enviesados quando considerado o gênero do solicitante. Quando pensamos em um sistema financeiro inclusivo, devemos nos perguntar: por que isso ocorre?
Uma vez que recebem menores montantes de créditos a juros mais altos, é certo que as mulheres são consideradas credores com maiores Scores de Risco e com menor potencial de honrar o pagamento do empréstimo, mas esta classificação é necessariamente discriminatória? Consideremos que a metodologia usada é a mesma aplicada para homens e mulheres e que os bancos e instituições credoras não querem prejudicar os seus clientes, afinal, o crédito tem a função de auxiliar a sociedade no crescimento da riqueza e no acesso aos bens de consumo e produção, o que é ótimo para os bancos. Por outro lado, avaliar o potencial de pagar um crédito de volta é um dos principais indicadores para a sustentabilidade do serviço de crédito. É aí que a situação se torna discriminatória, pois o poder de pagamento do crédito depende substancialmente da renda salarial dos tomadores de crédito e do tamanho dos negócios que possuem.
Quando a realidade econômica de homens e mulheres é muito diferente, com mais oportunidades de negócios e rendas para os homens do que para as mulheres, o modelo de crédito aplicado para financiar a atividade econômica de ambos acaba criando um viés discriminatório de gênero, com um aberto favorecimento de crédito para homens em detrimento de mulheres e com maior dificuldade de honrar os empréstimos para as mulheres.
Um estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018) mostrou que as mulheres ganham em média, 20,5% menos que os homens em todas as ocupações pesquisadas no país. Assim, se considerarmos homens em mulheres exercendo as mesmas ocupações, eles terão oportunidades diferentes de obtenção de crédito e pagamento dos valores recebidos. Com menos crédito, as mulheres terão menos chances de criar negócios independentes ou de formalizar seus negócios e consequentemente, receber novos empréstimos.
Quando consideramos o caso das mulheres empreendedoras, o gap de gênero no crédito fica ainda mais claro. Nós, mulheres brasileiras, somos ativas e buscamos oportunidades para crescer e sermos independentes. Em 2018, o Brasil teve a 7ª maior proporção de mulheres entre o grupo de empreendedores que iniciaram novos negócios, considerados 49 países do mundo. Infelizmente, não é só a vontade que faz o negócio crescer – empreender é uma tarefa dura que precisa de investimento e apoio financeiro, mas com menos crédito e taxas de juros mais altas, menos mulheres empreendedoras conseguem se tornar donas de seus negócios.
Observamos que a taxa de conversão de mulheres empreendedoras e donas de negócios é de 40% mais baixa, quando comparada à taxa de conversão dos homens que são donos de negócios. As mulheres respondem por apenas 34% dos 27,4 milhões de donos de negócios (empregadores + trabalhador por conta própria) existentes no Brasil, mesmo sendo a maioria dos empreendedores brasileiros. Por que é assim? Será que os homens são mais talentosos em fazer negócios?
Claro que não! Primeiramente, as mulheres que são donas de negócios tendem a ser mais jovens do que os homens (43,8 anos contra 45,3 anos no caso dos homens). Mas essa diferença não é representativa para explicar a experiência. Elas também apresentam maior escolaridade (16% maior), um fator que deveria ser positivo quando considerado o sucesso do negócio. Entretanto, vários elementos interferem na disponibilidade de tempo que as mulheres têm para trabalhar em seus negócios.
Tempo é importante para fazer crescer a empresa e gerar a boa rentabilidade, um dos principais fatores que reduzem o risco de descumprir os pagamentos dos créditos que os empreendedores tomam. Uma pesquisa do IBGE (2018) mostrou que as mulheres ocupadas no mercado de trabalho dedicavam 18,5 horas às atividades domésticas, enquanto os homens nessa mesma situação, apenas 10,3 horas. A taxa de realização de afazeres domésticos das mulheres ocupadas é de 77,08%, enquanto a dos homens é de 41,66%.
Uma pesquisa do Sebrae (2018) mostrou que as donas de negócio trabalham menos horas no negócio, do que os homens (18% a menos). Uma parcela expressiva de mulheres donas de negócios trabalha em home office (25%). No caso específico das mulheres que são MEI (categoria Microempreendedor Individual), essa proporção sobe para 55%.
Além disso, muitas mulheres precisam trabalhar por conta própria para sustentar sozinhas a casa e os filhos. Uma grande parcela das mulheres empreendedoras são “chefes de domicílio” (45%), a maioria delas cuidam sozinhas dos filhos, e por isso, a maior parte delas tem apenas um trabalho (96%), o que aumenta o risco de perda de recursos, caso venham a ficar impossibilitadas de trabalhar ou perder o emprego, e consequentemente, aumenta o risco de crédito (segundo dados do Sebrae de 2017 e 2018).
Além disso, as mulheres MEI estão à frente de negócios de porte menor, considerados menos rentáveis e mais vulneráveis a crises econômicas, o que dificulta que elas receberem crédito para fazer crescer os seus negócios. Elas se destacam em atividades de beleza, moda e alimentação, sendo estes setores de menor rentabilidade e resultado financeiro. A rentabilidade e o porte do negócio são dois dos fatores mais relevantes na avaliação de crédito para autônomos. No caso, as donas de negócios estão, em sua maioria, há dois anos ou mais na atividade atual (75%), tempo considerado pouco para julgar se o negócio é estável e rentável.
Há um ciclo vicioso que mantém as mulheres presas a negócios menos rentáveis, economicamente mais vulneráveis, além de terem menos tempo para investirem e fazerem crescer suas empresas dados que são as principais responsáveis pelo cuidado da casa e dos filhos (muitas vezes a únicas responsáveis), mesmo quando são empresárias, o que dificulta o crescimento econômico de seus empreendimentos, reduz a possibilidade de receber e pagar pelo crédito que teria o potencial de empoderar os seus empreendimentos.
Como resultado desse cenário de segregação, é mais baixa a proporção de mulheres empregadoras (13%), e as empregadoras mulheres têm menos empregados que os empregadores homens. Em geral, as mulheres donas de negócio, em sua maioria, estão à frente de negócios com até cinco pessoas ocupadas, incluindo a própria dona (94%).
Negócios pequenos têm mais dificuldade de receber crédito para capitalizar ou financiar o seu crescimento e, como consequência da dificuldade de receber crédito, ou de pagar por ele, as mulheres empreendedoras acabam trabalhando na informalidade. Mais de dois terços das donas de negócio trabalha sem CNPJ (empresa registrada). Poucas mulheres têm sócios (19%) e, quando têm, o número de sócios é baixo (o número médio de sócios é 0,58) nos negócios de mulheres.
Por consequência, as empreendedoras e donas de negócios recebem menos empréstimos que os homens. O valor médio do empréstimo para mulheres é de R$ 13.071 menor que o dos homens. Já a razão pela qual pagam taxas de juros maiores deve-se ao score de risco de crédito associado aos negócios geridos por mulheres que, em geral, é considerado mais inseguro que o dos homens na mesma posição ocupacional. A taxa anual para mulheres donas de negócios é 3,5 % acima dos homens donos de pequenos negócios.
O absurdo nessa situação, e que o crédito que deveria ter a função de promover a igualdade financeira, é enviesado por um mecanismo de avaliação de risco perverso que não foi pensado para criar equidade de gênero. Não só os modelos de crédito desfavorecem a avaliação dos negócios de mulheres em detrimento dos negócios dos homens, como eles também desconsideram o verdadeiro potencial que as mulheres têm de honrar o crédito, considere-se aqui que a taxa de inadimplência das mulheres é inferior à registrada por homens: 3,7% para mulheres contra 4,2% para os homens (Sebrae, 2018)
Sejam funcionárias ou empreendedoras, as mulheres são prejudicadas pelo modelo de crédito enviesados que é aplicado no Brasil. Ao empregar um perfil de risco discriminatório, não equitativo, os bancos e instituições credoras favorecem e sustentam a perpetuação do mecanismo de manutenção de um verdadeiro gap financeiro de gênero.
Dra. Vanise Zimmer – Presidente Elasbank
Referências usadas neste artigo:
Data Sebrae. http://datasebrae.com.br/ • IBGE (2018), “Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Continua”, II trimestre de 2018. • IBQP (2018), “Empreendedorismo no Brasil”. Global Entrepreneurship Monitor. • IBQP (2018), “Empreendedorismo no Brasil: relatório executivo 2018. GEM (Global Entrepreneurship Monitor GEM) • SEBRAE (2017), “Perfil do Microempreendedor Individual”. Relatório de pesquisa Sebrae. • SEBRAE (2017), “Indicadores de Crédito das MPE”. Relatório de pesquisa Sebrae. • SEBRAE (2018), “Transformação Digital nas MPE”. Relatório de pesquisa Sebrae. • SEBRAE (2018), “O Financiamento das MPE no Brasil”. Relatório de pesquisa Sebrae. “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD”. Relatório de pesquisa IBGE (2018).