Terminei o segundo relato dessa trilogia relatando o réveillon 1953/1954, que a família Sant’Anna passou nas ruas de Londres, numa noite em que bebidas alcoólicas eram liberadas. 

Algumas mulheres usavam um broche com a inscrição “Kiss me”, autorizando que os homens as beijassem. No rosto, bem entendido. 

Na manhã seguinte, iniciamos nosso tour final pela Europa, que terminaria em Lisboa, de onde embarcaríamos em um navio argentino, 17 de Octubre, de volta ao Rio. 

A primeira etapa do giro de despedida da Europa era Colônia (Koln), na Alemanha Ocidental, às margens do rio Reno (Rhein). 

Decolamos do London Airport em um Elizabethan (bimotor a pistão de asa alta) da BEA (British European Airways). Quando sobrevoávamos o canal da Mancha (English Channel para os britânicos), o motor da esquerda (justamente onde eu estava, junto à janela) pegou fogo, que foi apagado pelos extintores que estão ali justamente para isso. 

Sem que houvesse pânico a bordo, com o motor restante o comandante retornou a Londres, onde houve troca de aeronaves. Chegamos à Colônia no final da tarde. 

Várias coisas me impressionaram na cidade: 

– A majestosa catedral de Colônia fora poupada pelos bombardeiros aliados durante a Segunda Guerra. 
– Dava para se percorrer diversos quarteirões sem que houvesse sequer uma construção erguida. Só ruínas. 
– Boa parte da população vivia em tocas cavadas no chão. 
– Apesar do frio e da neve, muitos adultos e crianças andavam descalços, protegendo os pés com panos enrolados. 

– Com um dime (10 centavos de dólar) podia se comprar uma salsicha dos deuses dos ambulantes de rua. 

De Colônia, seguimos de trem para Munique (Munchen) e, de lá, também por ferrovia, para Berchtesgaden, região onde, mesmo durante a guerra, Adolf Hitler passava boa parte do tempo, no Kehlsteinhaus (Ninho da Águia), em Obersalzberg, no topo das montanhas. 

Desse modo nós três, os irmãos Sant’Anna, íamos aprendendo História in loco

Encerrado o tour alemão, demos uma longa esticada até Veneza, na Itália, que não sofrera bombardeios durante a guerra. 

Se o caro amigo leitor for hoje à Veneza, não encontrará uma cidade muito diferente daquela que conhecemos há exatos 70 anos: praça e basílica de São Marcos, palácio dos doges, ponte dos suspiros, grande canal, palacete onde viveu e morreu o compositor Richard Wagner (hoje em dia, um cassino), fábrica de cristais Murano. 

De Veneza fomos de ônibus para Florença (Firenze), que era, e continua sendo, um dos principais museus da humanidade. 

David, de Michelangelo, catedral (Duomo), Ponte Velha (Ponte Vecchio)… a essa altura meu irmão (12 anos) e eu (treze) já estávamos gostando de conhecer obras de arte. 

De Florença, seguimos de ônibus para Roma, acordada como Cidade Aberta durante a guerra, e, portanto, livre de bombardeios e ocupações militares. 

Tal como em Veneza e Florença, tudo (que interessa de verdade) que tem hoje em Roma já estava lá. 

Praça e Basílica de São Pedro, Pietá (Michelangelo), Capela Sistina (com o mítico teto, também pintado por Michelangelo), Catacumbas, Coliseu, Via Vecchia, Termas de Caracalla, Castel Sant’Angelo… não é à toa que Roma é conhecida como Cidade Eterna. 

Participamos de uma audiência coletiva com o papa Pio XII. 

Já ia me esquecendo de falar da pobreza pós-guerra da população local, que mendigava dólares de todas as maneiras possíveis, já que a lira italiana não valia nada. 

De Roma, descemos, de trem, a Bota, até Nápoles. 

Lá aconteceu uma coisa inédita. Fomos jantar em um restaurante próximo ao porto. Éramos os únicos clientes. Cardápios nas mãos, e feitas as escolhas de cada um, o dono do estabelecimento pediu ao meu pai: 

Dá para o senhor pagar adiantadamente?” 

Antes que protestássemos, ele explicou: 

É para que eu possa comprar os ingredientes.” 

Saiu à rua, adquiriu o que precisava. Uma hora mais tarde comíamos spaghetti alle vongole, seguido de vitela. 

De Nápoles, fomos até Pompeia e subimos ao topo do Vesúvio. Eu me empolguei tanto que quase caí na cratera fumegante de lavas, lá embaixo. 

Por mar, seguimos até a ilha de Capri, de onde fomos à Gruta Azul, cujas águas legitimam o nome. 

Terminado o périplo italiano, fomos de trem pela costa oeste da Itália e costa sul da França até Mônaco, contemplando uma paisagem deslumbrante atrás da outra. Ficamos lá não mais do que um dia e seguimos, sempre de trem, para Nice. 

A Cote D’Azur (Costa Azul) não tem muita graça no inverno. 

Já quase no final de janeiro, voamos, num quadrimotor DC-6 da Pan Am (Pan American World Airways) para Lisboa. 

Como o navio argentino 17 de Octubre, que nos levaria de volta ao Brasil, atrasou alguns dias, deu para conhecer bem o Portugal do ditador Salazar. 

Saímos de Lisboa na segunda semana de fevereiro e atracamos no porto do Rio uns quinze dias mais tarde. 

Tal como digo no título desta trilogia, essa viagem de pouco mais de um ano foi o maior aprendizado de minha vida. 

Um ótimo fim de semana para todos os amigos leitores e ouvintes. 

Ivan Sant’Anna 

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