De Plurale – O artigo foi publicado na Edição 73 da revista

Por Marcus Quintella*

e Mariana Lessa**

Os institutos de governança corporativa e de compliance estão amplamente estabelecidos no cenário empresarial privado e têm sido introduzidos no contexto das empresas públicas nos últimos cinco anos, buscando trazer parâmetros de gestão técnica transparente para o setor público, devidamente alinhados às melhores práticas das empresas privadas.

O conceito de governança pode ser abordado e considerado tanto sob a ótica pública, quanto sob a ótica privada. A governança pública está relacionada à direção da economia e da sociedade, visando objetivos coletivos. Sua concretização está relacionada (i) ao estabelecimento de metas coletivas coerentes que constituirão os objetivos para os quais os governos e seus parceiros na sociedade tentarão mover a sociedade e a economia; e (ii) à implementação dos programas que permitam alcançar as metas selecionadas, com a subsequente avaliação de seus impactos.

Segundo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), a governança corporativa é “o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas”, e as boas práticas de governança corporativa contribuem objetivamente para o “alinhamento de interesses das partes interessadas na administração adequada da sociedade e para a otimização do valor econômico de longo prazo da organização, contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum”.

A ideia de compliance está relacionada com a conformidade da regulação aplicável a determinado setor da economia e atividade empresarial, cuja materialização ocorre por meio da implementação, monitoramento e revisão de normas internas que assegurem aderência às leis e regulamentos aos quais a empresa está sujeita.

Enquanto a governança corporativa já vem sendo trabalhada há algumas décadas no contexto brasileiro, apesar de restrita às empresas privadas, a ideia de um programa de compliance – nesse caso voltado principalmente ao combate à corrupção e identificado como “programa de integridade”– foi introduzida no ordenamento jurídico através da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13) e seu decreto regulamentador, o decreto 8.420/15. Segundo o art. 41 do 8.420/2015, o programa de integridade consiste “no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira.”

Essas normas são aplicáveis às empresas privadas e, ao menos parcialmente, às empresas públicas e foram as responsáveis pela introdução de uma cultura de conformidade que, embora ainda carente de desenvolvimento, já existe nas sociedades empresárias brasileiras. Tanto é assim que, por alguns anos, a ideia de compliance no Brasil esteve relacionada quase que exclusivamente ao combate à corrupção e à integridade. Atualmente, o compliance se direciona também para a busca de conformidade com regramentos de proteção de dados e de proteção ambiental, para além das normas regulatórias próprias de cada setor da economia.

De fato, o regramento existente estimulou a implementação de programas de compliance nas empresas privadas brasileiras. Contudo, não havia mecanismos de incentivo para adoção de programas de compliance nas empresas estatais. É nesse contexto que foi editada a Lei das Estatais (Lei 13.303/2016), que visa regular o estatuto jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista que atuam na exploração da atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços. O objetivo principal da lei foi trazer mais credibilidade às estatais, por meio do reforço da transparência, da redução da margem para interferência política na gestão dessas empresas e da fixação de regras aptas a concretizar no dia-a-dia dessas instituições a aplicação dos princípios da Administração Pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Tudo isso para trazer mais profissionalismo à gestão das empresas públicas e evitar a prática de atos de corrupção.

Independentemente de possíveis críticas, a Lei das Estatais buscou impor maior necessidade de capacitação técnica aos dirigentes da empresa estatal, como forma de tentar desvincular a indicação do caráter meramente político. No que diz respeito ao compliance, a Lei das Estatais buscou mitigar os riscos decorrentes da falta de transparência estabelecendo uma série de requisitos que obrigatoriamente deverão ser observados, especialmente em relação à implementação de estratégias de prevenção a corrupção, de incremento da transparência e de implementação de controles específicos nos setores de licitação e contratos. A despeito da necessidade de fortalecimento e amadurecimento da cultura anticorrupção, a instituição de normas e procedimentos relacionados à integridade que estejam alinhados com as melhores práticas representam verdadeira evolução no combate a corrupção no país.

No que tange aos impactos no programa de desestatização do governo federal, cabe debater se uma governança corporativa adequada e alinhada às melhores práticas do mercado e a existência de um programa de compliance efetivo aumentariam e influenciariam a possibilidade de venda de uma empresa estatal e poderiam afetar o valor recebido pelo Poder Público na alienação de controle/abertura de capital.

Existem estudos de casos brasileiros que encontraram evidências de que programas de governança corporativa e compliance consistentes e competentes exercem impacto positivo sobre os retornos financeiros e a liquidez das empresas, bem como reduzem a volatilidade de suas ações no mercado. Além disso, a correlação entre governança e valor da empresa é significativa, ou seja, quanto maior o nível de governança e compliance de uma empresa, maior o seu valuation.

Assim, pode-se dizer que as mudanças relativas à transparência e profissionalização da gestão das empresas públicas e sociedades de economia mista, trazidas pela Lei das Estatais, se implementadas de forma efetiva e eficaz, podem repercutir positivamente no valor de mercado dessas empresas e aumentar o valor obtido por elas em um processo de desestatização.

Um ponto importante, que embasa a ideia de que um programa de integridade efetivo pode ser decisivo para o valor de mercado das empresas estatais, é o potencial que o compliance tem para mitigar os riscos do investidor privado no âmbito do programa de desestatização, notadamente no que se refere à responsabilidade por atos de corrupção ocorridos nessas estatais antes da aquisição.

Por todo o exposto no presente artigo, tem-se que a Lei das Estatais, apesar de não ter avançado tanto quanto poderia, trouxe uma efetiva melhoria na transparência e controle das empresas públicas e sociedades de economia mista por meio da aproximação das melhores práticas de governança corporativa e compliance. A implementação adequada dessas práticas, por sua vez, poderá facilitar e elevar os ganhos decorrentes do processo de desestatização que o governo brasileiro vem tentando implementar.

* Marcus Quintella – Doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ. Diretor da FGV Transportes. Professor e Coordenador Acadêmico da FGV Educação Executiva.

** Mariana Lessa – Mestre em Direito Público pela UERJ. Doutoranda em Administração e Gestão de Projetos pela Universidade de Bordeaux, França. Professora convidada da FGV Educação Executiva.