O mês de agosto assinalou a indicação de Gabriel Galípolo pelo presidente Lula para substituir Roberto Campos Neto na presidência do Banco Central do Brasil (BCB). Foi o grande evento do mês. O timing dessa indicação foi curioso, se comparado ao ciclo de política monetária:  a reunião do COPOM de número 263, de 19/06, por unanimidade, manteve a Selic em 10,50%. Na polêmica reunião anterior, em 05/08, o ritmo de redução na Selic foi reduzido e por um raro placar de 5 a 4: houve queda de 0,25%, e não de 0,50%, como nas seis reuniões anteriores, vindas de 13,75%.

Na reunião 263, os quatro diretores derrotados na 262ª – os que votaram para uma redução de 0,5%, que levaria a Selic para 10,25% – mudaram de ideia e votaram pela manutenção da Selic em 10,50%. São outras condições, é claro.

O fato é que o ciclo de baixa já estava terminado, e com pouco debate, quando o COPOM se reuniu pela 264ª vez e manteve os juros em 10,50%, novamente em votação unânime. Portanto, o presidente Lula não teve que se debruçar sobre a escolha do substituto de Roberto Campos Neto em momento de dúvida sobre a taxa terminal do ciclo de queda. Mas o momento seguinte talvez tenha sido até mais delicado.

O presidente da República não se manifestou sobre a decisão da 263ª. reunião, mas o diretor Gabriel Galípolo teve amplo espaço na imprensa para se expressar inclusive sobre a possibilidade de elevação da taxa de juros caso indicado e havendo necessidade. Já depois de confirmada a indicação, no dia 30/08, o próprio presidente Lula, em notável reviravolta retórica, afirmou que “se Galípolo disser que precisa aumentar os juros, ótimo, aumente”. Assim terminou a Batalha de Itararé da indicação do substituto de Roberto Campos Neto, mais uma crise que não houve. O presidente acabou encontrando termos de entendimento com o mercado.

Para o leitor não familiarizado, Itararé, na divisa do Paraná e São Paulo, era o ponto em que deveriam se encontrar, em 1930, as forças legalistas, que desciam do Norte, com as colunas de Getúlio Vargas, que subiam do Sul. Seria talvez a maior batalha campal da América do Sul, segundo a lenda. Entretanto, as partes se entenderam, não houve briga, nem feridos, e um novo presidente da República assumiu para depor Washington Luiz[1].

As falas de Galípolo sobre a não interdição da elevação de juros não foram propriamente muito em linha com o que se conhece como “a comunicação do Banco Central”. Mas foram interpretadas como um sinal de boa vontade do governo com relação aos mercados, especialmente depois do endosso do presidente da República. Aguarda-se a indicação de dois outros nomes de dirigentes do BCB cujo mandato termina no final do ano, um dos quais é o do diretor de administração, cargo reservado para funcionário de carreira.

Postura sincera?

O mês de agosto termina com uma solução para a indicação da liderança para o BCB. O presidente escolhe alguém de sua confiança, a pedido do ministro Haddad, no timing solicitado, e o escolhido fala o que o mercado quer ouvir. Será um bom desfecho a depender do desempenho do novo indicado nos desafios que se lhe apresentam. Será sincera essa postura de adesão firme à disciplina do regime de metas?

Galípolo afirmou em mais de um evento público que “a alta de juros está na mesa, sim, e que o Banco Central não vai hesitar, se for necessário”. Por outro lado, precisou esclarecer que não tencionava estabelecer guidance, ou seja, que não pretendia acrescentar novas tonalidades aos documentos do COPOM, mas que “fala e ação de diretor de política monetária têm que ser coerentes … Olhar para um lado e tocar para o outro fica bem para o Ronaldinho Gaúcho”[2].  

Mesmo temperadas pela fala do presidente da República nos dias que se se seguiram, as manifestações de Galípolo ficaram bem perto de “beijar cruz”. Será preciso ver como se desdobrará esse tortuoso “caminho do meio”, que possui as feições do ministro Haddad por toda a sua construção, mas primeiro será preciso ultrapassar as votações no Senado.

Para complicar ainda mais as coisas, os números para o PIB do segundo trimestre surpreenderam para cima, o que foi muito festejado pelo governo. Mas a ideia de uma economia sobreaquecida prestes a descarrilar da meta, e da necessidade de elevar juros, fica ainda mais concreta.

Ainda há muito terreno a percorrer nessa seara: a sabatina na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado é sempre um evento revelador, mesmo tendo um desfecho previsível, como também se espera que seja a votação no plenário do Senado. Não deve haver dúvida que esses trâmites no Senado serão acompanhados e examinados a cada centímetro e que a sabatina poderá ser um grande acontecimento midiático.

Tal como nos debates de candidatos a cargos eletivos, a sabatina produzirá muitas “lacrações” destinadas a produzir “cortes” para redes sociais e memes de todo tipo. O novo indicado estará frente a frente com senadores experientes, como Renan Calheiros e Ciro Nogueira, entre outros titulares dessa comissão. Tudo pode acontecer. O escopo da inquirição será imenso, como o peso político desse embate, e provavelmente haverá efeitos especiais.

No ano passado, numa audiência com Roberto Campos Neto, o senador Cid Gomes, membro titular da CAE, levou um quadro negro para a sessão (a fim de demonstrar o absurdo da taxa de juros) e entregou um boné com a logomarca do Santander ao presidente do BCB pedindo a sua renúncia. O que virá dessa vez?

Os ataques deverão vir pela oposição e provavelmente recorrerão às pensatas do indicado com o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, todas com grandes narrativas anticapitalistas e expressões de descrença com relação à teoria econômica em geral e à regulação financeira em particular[3]. Como o indicado deverá endereçar tantas contradições quanto as apontadas nesses estudos? Se não acredita na teoria convencional o que pretende fazer no BCB? São ideias dele ou de Belluzzo?

Além do sangue frio do novo indicado, o evento será um duro teste para a política econômica do governo, que Galípolo será chamado a enunciar, mas numa situação curiosa, pois terá de fazê-lo preservando a autonomia do BCB conforme recém fixada pela Lei Complementar 179 e sob os olhos atentos do mercado. Há muito em jogo nessa indicação.

Soma de erros

Vale lembrar que a chamada Nova Matriz Macroeconômica (NMM) não era propriamente uma nova teoria, uma abordagem alternativa ou um outro tripé, como às vezes apresentada. A experiência está muito bem documentada, sendo certo que até hoje não se encontrou um personagem importante nesse drama, o autor[4].

A NMM era uma não-política: um conjunto de peças e iniciativas desconectadas, e que foram se encaixando improvisadamente resultando em uma totalidade inconsistente. O descontrole fiscal, somado à contabilidade criativa emanando do Tesouro, não era uma política fiscal. Tampouco a “administração de preços administrados”          , no figurino definido por Aloisio Mercadante, era uma estratégia de combate à inflação que merecesse tal designação. O superávit primário foi destroçado, o BCB parecia mirar no teto de tolerância para o cumprimento da meta e se tentava englobar a improvisação e descontrole como uma nova fórmula para a política econômica.

A NMM é o que resulta da falta de orientação e identidade da política econômica e do improviso. Pode ser chique, sobretudo na academia, dizer que era uma tentativa de dar expressão a uma nova escola de pensamento, mas não é bem isso. A NMM foi uma soma de erros nos quais se quer encontrar uma coerência que provavelmente não existe.

Galípolo poderá ser perguntado sobre isso no Senado, mas não lhe faltarão maneiras de dissertar sobre o assunto. O problema não é propriamente a sabatina. Não será um passeio no parque, o preparativo terá de ser cuidadoso, e o indicado terá muitos apoios. O problema é de substância: teremos uma NNMM?


[1] A referência à Batalha de Itararé como a que não houve é comum na historiografia. Veja-se, por exemplo o texto de Rubens Ricúpero em https://www.rubensricupero.com/artigos/a-batalha-de-itarare/.

[2] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2024/08/12/galipolo-em-nenhum-momento-quis-passar-a-mensagem-de-que-alterei-o-tom.htm.

[3] Três títulos particularmente instigantes estão à disposição das assessorias no Senado para uso na CAE: Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo, de 2017, A escassez na abundância capitalista, de 2019 e Dinheiro: o poder da abstração real, de 2021, todos pela Editora Contracorrente.

[4] C. Safatle, J. Borges e R. Oliveira em Anatomia de um desastre: os bastidores da crise econômica que mergulhou o país na pior recessão de sua história. São Paulo, Portfolio Penguin, 2016.

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