Por Adriana Boscov, Colunista de Plurale (*)

Nos últimos meses tenho refletido muito sobre o que significa a (IR)responsabilidade de cada um. Mas essa reflexão não vem de hoje. Tudo começou em 2012 quando fui convidada pela Fundação BMW para fazer parte de um encontro para apoiar um empreendedor a desenrolar seu grande desafio. Com tudo pago, lá fui eu para uma ilha no meio dos grandes lagos no Canadá encontrar pessoas que eu nunca havia ouvido falar, de todos os lugares do mundo e especialidades tão diversas como cientistas, diretores da indústria de agronegócios e empresários de comunicação. O desafio do empreendedor era criar um modelo para medir e demonstrar como os riscos de um país influenciam outros países com base em dados sobre população, economia, saúde e outros tantos. Foi uma jornada incrível de aprendizado e troca. Nossas competências complementares e conhecimentos em áreas tão diversas ajudaram o empreendedor a enxergar saídas que sozinho ou em seu grupo de trabalho ele nunca conseguiria ver. Começou aí minha trajetória como líder responsável da Rede de Líderes Responsáveis da Fundação BMW.

Desde então, muita coisa aconteceu nesse nosso planeta. Coisas boas e coisas ruins. Mas uma questão sempre emerge nos momentos trágicos: de quem é a responsabilidade? Como uma líder responsável, sempre busquei entender o impacto das minhas decisões nos outros, nas empresas em que atuei ou com as quais trabalhei, nas comunidades onde os impactos seriam sentidos, e em mim mesma. Ser um líder responsável significa não só ter responsabilidade pelo outro, mas também sobre si, pois um líder exaurido não vai conseguir ser responsável com os demais.

Nessa rede conheci muitos líderes que vou chamar de “diferentes” e que pareciam ser a minha tribo – porque sempre fui vista e dita como a diferente. Esses/as líderes trabalham em empresas, órgãos públicos, academia e organizações sem fins lucrativos em diversos setores, temas e áreas de conhecimento. Porque eles são diferentes? Primeiro porque eles nunca querem fazer o que o status quo determina. Eles tem uma energia transformadora inquieta dentro de si que exige uma mudança, uma transformação para o melhor e para todos. E segundo, porque eles tomam a responsabilidade pelo outro para si e seguem mesmo com obstáculos que parecem ser intransponíveis. O diferencial de um líder responsável é que ele pondera todas as suas atitudes e decisões pensando no impacto no outro – outro podendo ser pessoas, animais, florestas, etc.

Perguntados sobre o que significa a Liderança Responsável, muitos deles/as dizem ser uma resposta às necessidades do outro, respeitando seus limites, valorizando suas qualidades, apoiando no percurso e sempre sendo um exemplo de conduta e inspiração. Não se trata de buscar o que é melhor para si ou para seu grupo, mas sim o que é melhor para a maioria, mesmo que com isso se “perca” algo, porque no fim todos ganharemos. O diferente é que esses líderes nunca tomariam uma decisão que pudesse prejudicar uma só vida, uma só árvore ou comunidade.

Segundo os dicionários, a palavra responsável quer dizer aquele que é capaz de responder pelos próprios atos. Ser responsável significa responder às necessidades dos outros. Não aos desejos, mas as reais necessidades de garantia de direito e igualdade.

Mas nos últimos tempos temos visto um incremento no número de tragédias que derivam exatamente de tomadas de decisão IRresponsáveis, que tem levado milhões de pessoas a morte, a buscar refúgio em outros países e danos ambientais que persistem por décadas, inutilizando regiões enormes do nosso planeta. Estamos vivendo um surto mundial de IRresponsabilidade.

Essa semana tivemos mais um exemplo disso com uma notícia que nos chocou: uma explosão devido ao mal armazenamento de nitrato de amônia que deixou centenas de mortos e milhares de feridos e desabrigados em Beirute no Líbano. O choque vem depois de muitos outros que aconteceram a bem pouco tempo atrás, alguns inclusive que estamos vivendo neste instante em que escrevo essas palavras: um vírus que se propaga rápida e descontroladamente matando milhões de pessoas; uma barragem que se rompe espalhando morte e destruição por centenas de quilômetros; uma boate que pega fogo ceifando a vida de centenas jovens; um time de futebol que morreu em um acidente com avião fretado; um edifício que desaba matando trabalhadores que trabalharam uma vida para pagar a casa própria; e tantos outros que vemos todos os dias nas notícias e que tomamos como normal. Todos esses “eventos” ocorreram nos últimos 10 anos em nosso amado país, mas se olharmos mais atrás na história, veremos que essas “fatalidades” acontecem há centenas de anos por uma única questão: a IRresposnabilidade dos tomadores de decisão que levaram a essas tragédias.

Tabela com as principais tragédias e número de mortos nos últimos 35 anos. Todas decorrentes de decisões irresponsáveis que causaram mortes e danos socioambientais que, em muitos desses casos, ainda têm impactos negativos sobre suas populações e o meio ambiente até hoje.

ANOEVENTOLOCALMORTOS / LITROSDANOS AMBIENTAIS E/OU ECONÔMICOSDANOS A SAÚDE DA POPULAÇÃO
1984Vazamento de 700 mil litros de óleoCubatão – SP500SimSim
1987Vazamento Césio 137Goiânia – MT4SimSim
1986Acidente usina nuclearChernobyl – Ucrânia30Sim, até hojeSim
2000Vazamento de óleoBacia Rio Iguaçu – PR4 milhõesSimSim
2001Vazamento de óleoBaía de Guanabara RJ1,5 milhãoSimSim
2010Vazamento de óleoGolfo do México – EUA780 milhõesSim, até hojeSim
2013Incêndio Boate KissSanta Maria – RS242SimSim
2013Incêndio de prédioSavar – Bangladesh1127NASim
2015Rompimento barragem SamarcoMariana – MG20Sim, até hojeSim
2016Queda do avião ChapecoenseBolívia71NASim
2019Rompimento barragemBrumadinho – MG270Sim, até hojeSim
2020Explosão no portoBeirute – Líbano+200SimSim

Fonte: Pesquisa realizada pela autora

E se os executivos de mineradoras que tiveram suas barragens rompidas tivessem acatado os relatórios de gerenciamento de riscos que previam tudo o que aconteceu? E se os donos de boates que se incendiaram tivessem pago mais caro por materiais não inflamáveis? E se os executivos de petroleiras e navios cargueiro de óleo tivessem seguido todas as normas e decidido interromper as atividades ou melhorar a manutenção? E se, e se, e se….Mas como diz minha mãe, com “e se” a gente mudava o mundo. Mas “e se” executivos, policiais, médicos, professores, e todas as pessoas como eu e você que está lendo este artigo, passassem a tomar suas decisões pensando que os impactos dessas decisões seriam sobre suas famílias, seus filhos, seus pais? Será que as decisões que levaram tantas vidas e destruíram tantos biomas teriam sido evitadas?

Muitos seres humanos IRresponsáveis perderam sua humanidade, o respeito e empatia ao próximo. Nos tornamos uma sociedade onde a humanização é vista como fraqueza e não como uma competência necessária para nossa sobrevivência como espécie. Já dizia Saint-Exupery no livro O Pequeno Príncipe “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Somos todos responsáveis por nossas decisões, atitudes e tudo que deriva delas, positivas ou negativas. Não se pode responsabilizar o político corrupto se você pedir um recibo de maior valor ao taxista; não se pode responsabilizar o presidente da empresa pela poluição dos rios e mares se você opta por comprar um apartamento que não tem esgoto tratado; não se pode responsabilizar o funcionário que deixou de cumprir com as normas de segurança causando a morte de colegas se você mesmo não as cumpre no dia a dia em sua vida pessoal.

E eis que entra 2020 com uma pandemia que colocou milhões de pessoas trancadas em seus lares. Uma quarentena forçada por um vírus que se espalha rapidamente e não escolhe raça, classe social, nível educacional ou qualquer outra característica. Todos podemos ser a próxima vítima, todos podemos levar a morte de outros, inclusive daqueles que amamos. A pandemia trouxe o melhor e o pior de cada um de nós. Corrupção nas decisões IRresponsáveis dos gestores que “ganharam em cima da desgraça alheia” e benfeitoria nas decisões responsáveis de gestores que tomaram para si o chamado de responder às necessidades dos mais vulneráveis. A pandemia nos mostrou que somos seres humanos capazes de apoiar uns aos outros, de ser responsáveis não só por nós mesmos, mas também para com outros. Muitos se responsabilizaram por pessoas desconhecidas simplesmente porque se sentiram privilegiados e capazes de fortalecer aqueles que mais precisam.

E voltando para o início deste artigo e a história do empreendedor e seu grande desafio, fica claro hoje que decisões tomadas em outros países podem afetar drasticamente muitos outros. Uma decisão IRresponsável de um gestor do agronegócio pode acabar com a exportação de um determinado produto e ceifar a renda e o emprego de centenas de pessoas. Uma decisão IRresponsável de empresas multimilionárias da moda americana pode causar a morte e degradação de trabalhadores em situação análoga à escravidão em Bangladesh. Assim como uma provável decisão tomada em um laboratório de pesquisas de doenças na China, pode levar a morte de milhões de pessoas em quase todos os países do mundo!

O planeta é um só e está mais conectado do que nunca. Decisões IRresponsáveis vão continuar contribuindo para mortes que poderiam ser evitadas e destruição que nunca deveria acontecer. A responsabilidade por uma sociedade mais justa e igualitária é de cada um de nós, a cada decisão e atitude que tomamos, por menor que seja. É pensar que tudo o que fazemos tem um impacto no(s) outro(s) e que esse impacto pode mudar para sempre a vida deste outro ser humano. Sejamos mais responsáveis pela sociedade que queremos. Sejamos mais responsáveis pelos seres humanos que estão à nossa volta. Sejamos mais responsáveis e não toleremos mais a IRresponsabilidade.

(*) Adriana Boscov tem mais de 30 anos de experiência em gerência de equipes e projetos, análise de mercado, estratégia e desenvolvimento de novos negócios, planejamento estratégico e marketing. Mais de 10 anos de experiência em investimento social privado, responsabilidade social corporativa e sustentabilidade. Com um Mestrado em Relações Internacionais com concentração em Desenvolvimento Internacional da Georgetown University, focou seus estudos em alianças público-privada e responsabilidade social empresarial (RSE). Antes de trabalhar com desenvolvimento, Adriana se formou em Administração de Empresas pela FAAP, trabalhando no setor privado nas áreas de marketing, vendas e novos negócios. Desde 2005 trabalha em posições gerenciais e de direção no terceiro setor e setor privado, desenvolvendo projetos de desenvolvimento sustentável junto a parceiros na África, Américas, Ásia e Europa. Em sua carreira profissional Adriana ocupou diversas posições de liderança com representante do GIFE pelo Instituto ibi, Presidente da Comissão de Sustentabilidade do Setor de Seguros pela CNseg e Conselheira da iniciativa Princípios para a Sustentabilidade de Seguros (PSI) da UNEP-FI, além de ser professora em cursos de Responsabilidade Social e Sustentabilidade. Atualmente Adriana é consultora nas áreas de responsabilidade empresarial, sustentabilidade e investimento social privado, atuando em temas como gestão, estratégia e treinamento.